Entrevista Carlos Trigueiro

entrevista“Os americanos têm uma expressão muito interessante para a elaboração de uma história: ‘No guts no story’ (‘Sem tripas, não tem história’).” Adepto do pensamento de Sábato, que diz que o escritor é mártir de uma época, Carlos Trigueiro fez de sua Trilogia da feiúra o retrato de sua era: “O autor é testemunha do seu tempo”.

Qual é a definição da Trilogia da feiúra, série da qual O livro dos desmandamentos faz parte?
Definição implica limites, demarcação. No terreno ilimitado da ficção, fico mais à vontade expondo do que definindo. A idéia da Trilogia da feiúra veio com a observação de que vivemos uma época de culto à estética, em detrimento do conteúdo. Nosso cotidiano de trabalho, sentimento e lazer é bombardeado pelo marketing, pela mídia, pela cultura de massas impondo padrões de beleza. Com a transformação das pessoas em consumidores prevalece a cultura da aparência, da forma, da qualidade do belo. O invólucro tornou-se mais importante que a substância. Mas as misérias humanas continuam as mesmas, talvez piores, hoje acentuadas por contrastes inevitáveis oriundos da globalização. Assim, parti do contraponto da beleza –– da feiúra, para enfocar as lentes da ficção sobre certas impurezas da condição humana. Em O clube dos feios, a heroína da história descobre que a felicidade não está na aparência estética, mas, na sua alma, no íntimo inacessível ao bisturi que a converteu de mulher feia em beldade. O livro dos ciúmes trata da feiúra sentimental em épocas e quadrantes diversos, dissecando o ciúme na tônica de Shakespeare: “… é um monstro de olhos verdes, que escarnece do próprio pasto de que se alimenta…” Em O livro dos desmandamentos procurei me imbuir de que o escritor é testemunha e mártir do seu tempo, como bem o disse Ernesto Sábato, e então, na mesa de cirurgia da ficção, fiz um corte visceral na feiúra social e política do nosso país. Está lá no texto, a extração da feiúra: “Há muitas maneiras de fazer merda. Quem for imune à porcaria, que consulte o histórico político do país –– uma odisséia de desmandamentos”.

Como o senhor descreveria O livro dos desmandamentos e qual é a principal diferença desta para as suas obras anteriores?
O escritor, em princípio uma pessoa esclarecida, tem responsabilidade com a sua época, com a sociedade e país onde vive. O livro dos desmandamentos aborda, de modo sarcástico, algumas razões da incapacidade histórica de nossas elites na governança do país. Em termos literários é um vôo rasante sobre as mil e uma desgraças que moldam a exclusão social e política de milhões de brasileiros. Construir um romance político, gênero difícil, é um desafio seja pelo risco de comprometimento com alguma causa, seja pelo risco de realizar algo panfletário. A vulgaridade e a impureza das questões políticas podem afastar o escritor do objetivo maior da Literatura –– os sentimentos da condição humana. Daí não ter escrito um romance convencional. Daí a necessidade de tê-lo escrito assim, inicialmente tangendo o ensaio, com rasgos antropológicos e, aos poucos, crivando-o de situações ao estilo do teatro mambembe e da literatura de cordel. Abordando tópicos da nossa recente história política sem a figura de um vidente para elevar o tema à esfera da ficção (já que a realidade é sórdida), o narrador não traria nada de novo à Literatura, seria como juntar registros de delitos penais a notícias e prontuários policiais. A principal diferença entre meus trabalhos anteriores e O livro dos desmandamentos é que este aborda uma temática genuinamente nacional, enquanto os primeiros tratam de temas universais.

Qual é a face que mais se destaca no livro: a ficção ou o teor político?
A ficção. O crítico norte-americano Irving Howe diz que a literatura latino-americana, apesar da eloqüência zombeteira, riqueza de metáforas e hipérboles perfazendo uma retórica inflada, retrata nossa impotência contra a depredação política, nosso desespero apelando à fantasia, ao realismo mágico. O livro dos desmandamentos aborda essa nossa incapacidade histórica de reverter o pathos colonial. Qualquer cidadão de bom senso, pode imaginar o que levam senhores que chegaram à Presidência da República, o mais elevado dos cargos públicos, e que, bem ou mal já fazem parte da História, a não abandonarem o cenário político, e a se acomodarem em cargos inferiores, de prefeito, de governador, de senador, ou mesmo pleiteando chefias de embaixadas no Exterior. Obviamente, um ensaio político sério sobre essa estapafúrdia constatação na política brasileira pode até virar tese de mestrado ou doutorado em ciência política, mas morrerá como um trabalho acadêmico a mais. Outra coisa é colocar o mesmo assunto na boca de um vidente que dá a seguinte explicação a jornalista estrangeiro: “… isso acontece porque nossas elites dirigentes vivem em estado de sodomia política…” No caso, acho que esse é o papel da ficção, transfigurar a realidade e divulgá-la de modo chocante para que as pessoas pensem a respeito da sociedade que construíram e tentem modificá-la.

Como foi a pesquisa histórica para a elaboração d’ O livro dos desmandamentos?
Soaria pretensioso dizer que a última tecnologia de ponta cabe no bolso do bárbaro. Mas foi o que aconteceu. Utilizei o computador e a Internet para consultar arquivos, jornais, dicionários e enciclopédias. Mas, eu mesmo tenho uma biblioteca e arquivos razoáveis. Naturalmente que, como testemunha histórica do meu tempo, revivi o menino, o adolescente e o estudante que fui em algumas partes do livro. Além disso, vasculhei meus escaninhos da memória, experiência e emoção. Passagens do livro, por exemplo, onde aparecem o jornal comunista O Democrata (de Fortaleza), o Sanatório Santa Alexandrina para doentes mentais, e o bonde 47 – Santa Alexandrina (ambos no Rio de Janeiro) que transporta o personagem Simplício às imediações do comício da Central do Brasil existiram de fato, e foram resgatados pela memória.

Os personagens – em especial o coronel Justo Sacrossanto – foram baseados em figuras reais?
Ainda menino, conheci de perto tanto o lado paradisíaco quanto o miserável do litoral e sertão nordestinos. Alguns personagens saíram da memória para a ficção, caricaturados obviamente. Retirei de figuras reais, anônimas ou não, as marcas inconfundíveis de um olho verde e outro azul dos irmãos gêmeos Raimundo e Simplício, e do vidente Santinho. O coronel Justo Sacrossanto é um arquétipo da infinita tragédia brasileira, do nosso incurável pathos oligárquico. No livro, o coronel Sacrossanto vê-se no espelho como quase Deus, mas em determinado momento ele tem certeza de que é mesmo Deus. Na vida real, Justo Sacrossanto, pode não estar em toda parte, como Deus, mas ocupa vários assentos no Congresso nacional e ali age e vota com suas duas mãos direitas.

A esquerda brasileira, no poder, passou a ter dois braços direitos, como Justo Sacrossanto?
Não há, nem haverá tão cedo, condições internas e externas de alternância plena do Poder. Nossas esquerdas românticas não estavam preparadas para o gerenciamento da sociedade industrial, nem para a ruptura do atraso. Ademais, é impossível destruir com retórica e boa vontade as fortificações absolutistas das oligarquias que moldaram essa incapacidade histórica de evoluir, de desenvolver o país, de resgatar a exclusão social. Nem mesmo a hegemonia militar de 1964 a 1985 poderia ter governado o país sem o concurso dessas eternas oligarquias de direita. No jogo semântico da ficção literária, o vidente Santinho diz, entre outras coisas que “… nossas elites moldaram uma civilização sem civismo, uma cultura de desmandos, uma nação sem consciência crítica, uma sociedade não-solidária. Diz ainda que “no século XXI, haverá chance de as esquerdas chegarem ao poder, mas, com uma condição, terão que se endireitar… e uma vez no poder, vão tratar de se conservar”. Em suma, o braço esquerdo no poder aos poucos se transforma noutro braço direito.

Você seria capaz de encarnar o personagem Santinho e prever o futuro do Brasil?
Santinho provavelmente diria: “O Brasil é um país legalmente constituído e instalado no caos. Tem políticos sem ideologia, e política sem ideais. Tem lideranças, mas não tem governança. Tem democracia, mas dirigentes e dirigidos não sabem exercê-la. Tem autoridade legal, mas não tem autoridade moral. Tem uma economia inviabilizada de fora para dentro e do passado para o presente. Tem excesso de tribunais, mas escassez de justiça. Tem cidadãos, mas não tem civismo. Tem terras e sem-terra sem-fins. Tem padrão monetário de curso legal, mas a corrupção é moeda corrente. Tem parques industriais, mas não tem emprego. Tem imprensa livre, mas tem trabalho escravo. Tem bancos lucrativos, mas produtores falidos. Tem estradas, mas não tem caminhos. Tem portos, mas não tem navios. Não tem pena de morte, mas tem assassinos em cada esquina. Tem a maior população católica do mundo, mas nunca teve um santo. Tem gloriosas Forças Armadas, mas tem política de desarmamento. É brutal em impostos, juros e confiscos, mas imoral na sonegação. Tem entreguistas condecorados, mas nacionalistas olvidados. Tem trouxas de leis, mas penalidades frouxas. Tem todos os tipos de polícia, mas nenhuma segurança pública. Tem direitos humanos para homicidas, e o deus-dará para órfãos e viúvas. Então, o futuro do país será o desdobramento disso tudo. Felizmente, videntes não são eternos”.

Você sempre teve um projeto literário ou na verdade nunca pretendeu fazer carreira literária?
Na verdade, meus escritos não conheceram prancheta, modelo ou intenção de projeto. Fui escrevendo. Com o amadurecimento, surgiram idéias de formar uma obra. Mas nada de projeto final e acabado. Vou escrevendo. Nunca pensei nem penso em carreira literária. Escrevo.

Você acha que certos elementos — ambiente, convívio familiar, cidade natal, atividade profissional etc — contribuíram para moldá-lo como escritor?
Certamente influem. Meu pai era mestre de banda militar. No final da década de 40, mal havia rádio em Manaus. Ele colocava os quatro filhos nas redes, embalava-nos cantarolando hinos e cânticos melodiosos, alguns nostálgicos. Minha mãe, nascida e criada no interior do Amazonas, nos contava histórias da sua experiência nos rios, igapós e matas, além de gostar de recitar versos de poetas amazonenses. Com treze anos, quando cheguei ao Rio de Janeiro, eu já havia vivido em Manaus (AM), Belém (PA), e Fortaleza (CE) e viajado pelo interior de cada estado. Sabia de canoas, jumentos e jangadas. Havia visto florestas, rios imensos, igapós sombrios, mares bravios, dunas alvíssimas, leitos secos de rios, e poeira dos sertões. Naturalmente o vocabulário da família se tornaria vasto, pois tínhamos de nos adaptar ao linguajar de cada região. Mais tarde, vivi e trabalhei quatorze anos na Espanha, Itália, China e nos Estados Unidos. Foram experiências ricas e inesquecíveis. Tantas experiências podem não ter moldado minha escritura, mas, inegavelmente, incentivaram a imaginação.

Alguma de suas obras — como, por exemplo, O livro dos desmandamentos — poderia ser classificada como roman à la clef?
Creio que não. Acho que estão mais para o fantástico, embora haja tramas policialescas em alguns de meus contos. O livro dos desmandamentos é um romance não convencional, mas o considero antes de tudo um romance político –– que é um gênero muito difícil.

Quanto tempo uma obra leva para amadurecer?
Isso é aleatório. Levei oito anos escrevendo O clube dos feios, e noventa dias para escrever O livro dos ciúmes. Levei cinco anos escrevendo Pecados pronominais/Funeral das elites, cujos originais chegaram a ganhar uma menção honrosa da União Brasileira dos Escritores, mas eu mesmo reconheci que é excessivamente experimental. Está na gaveta aguardando o momento para ser reescrito. Portanto, é um livro que pode levar uma, duas décadas ainda amadurecendo, e pode até não ficar pronto nunca.

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