Atenção, leitores , críticos e ‘o povo em geral’ ! está na praça um grande livro, uma obra que dignifica a literatura brasileira. Trata-se de um romance político, mas não desses escritos panfletários, diletantes, dialéticos que costumam povoar a ficção literária com a superficialidade, a fragilidade e a inconsistência das obras menores. O livro dos desmandamentos: profecias de um excluído (editora Bertrand Brasil, 176 pgs.), como o próprio autor, Carlos Trigueiro — guardem bem este nome — adverte, ” não cuida de guerras de ideologias, de religiões, nem de revoluções partidárias”; é romance que aborda “essa nossa incapacidade histórica de reverter o pathos colonial”, sobre “a hipocrisia de uma sociedade que se crê estável, ordeira e pacífica” .
Um tom de realismo mágico que perpassa a escrita serve à perfeição para retratar e radiografar — como poucos ficcionistas brasileiros do momento— uma realidade trágica. A trama de O livro dos desmandamentos é ambientada em um isolado e miserável arraial nordestino chamado Quebra-Vento, um lugar que não possui qualquer sinal de autoridade oficial, onde inexistem delegacias, escolas, bancos e postos de saúde, e dinheiro vivo também é uma raridade, fazendo com que favores e obrigações sexuais funcionem como moeda corrente.
O vigésimo primeiro filho do casal José e Maria, batizado com o nome de Todos os Santos Silvério,com um olho azul e outro verde, logo apelidado de Santinho: ganhou fama de abençoado e seu primeiro milagre foi fazer com que os habitantes de Quebra-Vento – gente que nunca sentia satisfação alguma e, por conta disso, tinha inertes os músculos do riso – reaprendessem a sorrir. Em 1964, com apenas sete anos e já tendo decorado todos os versículos da Bíblia (tanto em português quanto em inglês), Santinho previu a ditadura militar e todo o fracasso político-social que o Brasil passaria a enfrentar a partir de então. Suas sábias palavras logo foram parar nos principais jornais e se espalharam pelo país, chegando aos ouvidos e aos dois braços direitos – frutos de um defeito congênito – do cruel e diabólico coronel Justo Sacrossanto, um dos poucos donos das muitas terras brasileiras, que percebeu que o dom do jovem poderia botar seu poder em risco e ordenou que um de seus capangas cortasse fora sua língua.Mas a vidência de Santinho nunca se esgotou, a ponto de vaticinar, por exemplo que“no século XXI, haverá chance de as esquerdas chegarem ao poder, mas, com uma condição, terão que se endireitar… e uma vez no poder, vão tratar de se conservar” ] Para bom entendedor, poucas palavras bastam : o braço esquerdo no poder aos poucos se transforma noutro braço direito…
A ironia árida e sombria, aliada à crua interpretação de uma realidade, sob as linhas de uma primorosa construção ficcional , fazem desta obra ,muito mais do que um documento da conturbada história brasileira , um dos melhores exemplos do que se chama ‘alta literatura’. Que,aliás, Trigueiro vem praticando há muito : O livro dos desmandamentos compõe uma “trilogia da feiúra” — com duas de suas obras anteriores , O clube dos feios e outras histórias e O Livro dos ciúmes — concebida, segundo ele, pela observação de que “vivemos uma época de culto à estética, em detrimento do conteúdo, nosso cotidiano de trabalho, sentimento e lazer bombardeado pelo marketing, pela mídia, pela cultura de massas impondo padrões de beleza, transformando as pessoas em consumidores e fazendo prevalecer a cultura da aparência, da forma, da qualidade do belo ; só que as misérias humanas continuam as mesmas, talvez piores, hoje acentuadas por contrastes inevitáveis oriundos da globalização. Assim, parti do contraponto da beleza –– da feiúra, para enfocar as lentes da ficção sobre certas impurezas da condição humana”.
Consciente , e praticante, da máxima segundo a qual o escritor tem responsabilidade com sua época, com a sociedade e país onde vive , é antes de tudo testemunha de seu tempo, Trigueiro em O livro dos desmandamentos faz um corte visceral na feiúra social e política do Brasil e alça em termos literários um vôo rasante sobre as mil e uma desgraças que moldam a exclusão social e política de milhões de brasileiros. Por vezes tem-se a clara visão de estar diante de um instigante ensaio, porém desprovido de aparato sócio-analítico e dos ranços de tese acadêmica; mas a qualidade literária do livro é tamanha que pouco a pouco,para gáudio do leitor (e do crítico) delineia-se magistral mescla — que só grandes escritores sabem construir — das tinturas não-ficcionais com teatro mambembe, romance de cordel, narrativa picaresca, sempre permeada , numa espécie de jogo semântico de ficção , pela crítica pungente à história política brasileira ,dos primórdios aos tempos atuais. História durante a qual, sentencia o vidente Santinho,“… nossas elites moldaram uma civilização sem civismo, uma nação sem consciência crítica, uma sociedade não-solidária, uma cultura de desmandos”.
O livro dos desmandamentos : profecias de um excluído comprova ser Carlos Trigueiro um escritor de notáveis recursos estilísticos e de linguagem, perfeito domínio narrativo, delineados pelos contornos da inventividade e da maturidade.Que lhe sejam conferidas as merecidas loas pela extrema qualidade literária — já presente no memorialístico Memórias da liberdade (1985) , na coletânea de contos O Clube dos Feios e outras histórias extraordinárias (1994) , no romance O Livro dos ciúmes (1999)
Trigueiro há muito deixou de ser “uma revelação” para ser, sem favor algum, um dos melhores escritores do Brasil, distante de modismos e ‘desconstruções’ pós-modernistas, como legítimo representante de uma linhagem especial de contistas e romancistas. Daqueles que sabem compor personagens, situações, tramas e ambientações dotadas ao mesmo tempo de ‘universalismo’ ficcional (caso de O Clube dos Feios …, de O Livro dos ciúmes),tão inerente à literatura contemporânea — codimentado de altíssimo teor filosófico, ideológico e mesmo psicológico — sem no entanto em momento algum abdicar de uma genuína ‘brasilidade’,como excepcional documentarista do homem brasileiro, da sociedade, do País. Talento mais do que nunca pungente neste excepcional O livro dos desmandamentos….
Mauro Rosso é ensaísta e crítico literário; autor de São Paulo, 450 anos: a cidade literária.