Sábado, Setembro 17, 2011
ENTRADA PROIBIDA A PESSOAS COM OS PÉS NO CHÃO
No novo romance que saiu agora pela Record, Carlos Trigueiro – apesar de confirmar que sempre se deixou e se deixa conduzir por invisível mão machadiana – reafirma-se como criador raro: pode-se assegurar, logo à primeira vista, que qualquer página de Libido aos Pedaços tem estilo tão pessoal quanto um detalhe de Warhol, Aleijadinho, Gaudí ou Philip Glass. É visível o esmero com que o autor elabora cada frase, até que o efeito especial esperado lhe aflore.
Se me deslumbravam, quando menino, versículos como “Há três coisas que me maravilham e uma quarta que não entendo”, pinçada por meu pai nos bíblicos Provérbios; se me alumbraram, depois, achados de Guimarães Rosa, como “Coração de gente: o escuro, escuros”; e os de García Márquez: “El mundo era tan reciente, que muchas cosas carecían de nombre”, imagine-se a sensação de reencontro de qualidade, quando li esta descrição que Otávio Nunes Garcia, narrador de Trigueiro, faz da bela cunhada (e psicanalista) Larissa:
… maçãs do rosto colhidas do paraíso, boca profissional, lábios amadores, canto de sereia, olhos de gazela, nariz fatal, pescoço de garça, cabelos a cavalo, torso pintado a óleo, seios adolescentes, cintura a palmo, ventre livre, púbis selvagem, sexo alagadiço…
A evidente técnica machadiana da enumeração fica em suspenso, quando as palavras maçã e paraíso nos levam ao Gênesis, e gazela faz ver que o trecho (conscientemente ou não) tem o toque de um ponto mais para a frente, na Bíblia, o da justamente famosa descrição da Sulamita, feita por Salomão no Cântico dos Cânticos, que inclui:
… teus seios são como dois filhos gêmeos da gazela…
Num dos soberbos contos de Confissões de um Anjo da Guarda – seu livro anterior – Trigueiro diz: A distância custou-lhe vinte e oito libras, três quartos de hora e meia dose de paciência.
Estava, ali, clara – como observei na época – , a influencia do Bruxo do Cosme Velho, que escreve, no capítulo XVII do Memórias Póstumas de Brás Cubas:
Marcela amou-me durante quinze meses e onze contos de réis.
Mas eu falei em “Técnica de enumeração”! Em que consiste isso? Leia, em Libido aos Pedaços: … como se a vida fosse um veículo dentro de outro. E eles trocam de marcha, nome, casa, carro, parceiro, clube, médico, doença, celular, idioma, religião, canal de TV, lugar no sofá, emprego, família, dieta, tatuagem, horários, travesseiro, advogado, tranquilizante, perfume, xampu, dentifrício, livro de cabaceira, computador, e-mail, senha de banco, profissão, amuleto, certezas, academia, dúvidas.
Isto é aplicação da estética do excesso à moderada técnica machadiana. Veja no Capítulo XIII, de Memórias Póstumas de Brás Cubas: … a enfadonha escola, onde aprendi a ler, escrever, contar, dar cacholetas, apanhá-las. …Tinha amarguras esse tempo; tinha os ralhos, os castigos, as lições árduas e longas.
… Um velho mestre, ossudo e calvo, me incutiu no cérebro o alfabeto, a prosódia, a sintaxe, e o mais que ele sabia, benta palmatória.
Machadianamente, também, Trigueiro escreve, na nova obra, lá pelas tantas, depois de um enterro:
Finalmente, não mais que cento e poucos passos, três dedos de prosa filtrada no celular e dez minutos adiante, em todas as cabeças a consciência da morte deu de ombros, entrou no carro previamente estacionado ou pegou um táxi.
O curioso é que se tais ou quais refinados recursos estilísticos deram prestígio ao escritor num romance como O Livros dos Desmandamentos e em dezenas de estórias curtas, em Libido aos Pedaços nós o vemos, num pulo de gato, transferi-los para seu novo personagem, Otávio Nunes Garcia, entregando-lhe a narrativa.
Supõem que vivo a polir retórica para amainar tormentas da consciência. Suspeitam que meu floreado de palavras esconda sujeira. Vai ver sacaram tudo, direitinho.”
E, mais adiante: … feérico, a possuí. Não com o falo. Só com a fala.
Destaque-se, sobretudo, que existe muito, no novo romance, das Memórias Póstumas de Brás Cubas. Pela filosófica ironia ferina, pela família da elite carioca, pelos capítulos curtos, e pelo relato na primeira pessoa, feito por alguém que – se não nos está contando tudo depois de morto, como o personagem machadiano – bem… leia-se o livro.
E vamos em frente.
Página 56:
Otávio relembra o aviso afixado na porta do consultório de Larissa:
“Entrada proibida a pessoas com os pés no chão”.
Página 71:
Relembra das palavras do Dr. Guilherme Pessoa, ao recebê-lo em seu consultório:
– “… aqui a entrada só é proibida a pessoas com os pés no chão.”
A frase – para mim – tem algo do Lasciate ogni speranza, voi ch´entrate ( Deixai toda esperança, vós que entrais ) que Dante lê na porta do inferno. Que inferno, aqui? O de sentir-se enlouquecer. Várias vezes Otávio deixa escapar a expressão “alienista” – como no título do célebre conto do criador de Capitu – para designar sua amada médica, depois o marido, que administram, um após outro, seu desequilíbrio mental:
Mas, doutora, aliás, Larissa, droga! Desculpa a minha confusão de você ser e não ser quem eu gostaria que fosse. Isso me põe louco! Já não sei se o meu envolvimento com Larissa, de tão bom e bem dissimulado, foi mesmo real.
Capitu transou ou não com Escobar, no Dom Casmurro?
Mais adiante:
Em verdade, nós, humanos, passamos a maior parte do tempo no mundo psicológico, criando verdades sem alicerces e mentiras sobre vigas. Isso ganha volume depois que Otávio participa da primeira reunião com a família da noiva, em que se incluem a futura cunhada psicanalista e sua mana mais nova: Lá pelas tantas, beijinhos e afagos sociais, ao despedir-me com o sonoro cumprimento de boa noite a todos, percebi que, assim como as três irmãs, eu também levitava meio palmo acima do chão.
Bem.
Falamos em inferno e me lembro de que na sua velha Teoria do Romance, Lucáks observava que o herói demoníaco é um louco ou um criminoso. Assim, à galeria de notáveis como Quixote, Vitorino Carneiro da Cunha, Príncipe Mishkin e Raskolnikov, pode-se agora inserir esse Otávio Nunes Garcia… e todos os seus coadjuvantes, pois ninguém de perto é normal. De perto, mesmo. Pois Otávio diz:
… vasculho mochilas, baús, escaninhos, pilhas, cortinas, brechós e sebos da memória.
Há um diálogo de Débora com o marido Otávio – o narrador, que é biólogo – maravilhosamente esclarecedor:
“Você sabe que não comento insignificâncias, querido, isso é coisa de quem não sai do microscópio”
“Mas , minha flor, é ali no microscópio que se vê a origem das coisas, da vida, do mundo, e, bem de perto, como se formam e em que se transformam as insignificâncias.”
O grande lance do novo romance de Trigueiro, aliás, além da surpresa final e da acuidade do autor, é o texto em si. É inevitável o uso frequente dos botões Pause e Replay quando o lemos, pois, como acontece com preciosidades das histórias em quadrinhos, nas quais não podemos deixar de nos deter nos desenhos de virtuoses como Will Eisner, Alex Raymond, Milo Manara, Esteban Maroto, Franco Caprioli, ou Albert Uderzo, paramos, frequentemente, para voltar e degustar melhor o que acabamos de saborear em avant-première. Sabiamente, porém, o autor se interrompe sempre que se vê no perigo de cair na rotina, passando a criar diálogos com outro tipo de maestria, aquela em que evita qualquer rubrica (indicações de cena, no teatro), expondo-nos única e exclusivamente as falas dos personagens, em itálico, num despojamento que exacerba o de Hemingway. Quando são apenas dois os interlocutores – quase sempre nas sessões de psicanálise – Otávio começa por nos colocar a situação, como se faz no teatro, depois do que um dos personagens diz alguma coisa, o outro faz sua réplica, segue-se a tréplica, e a coisa flui. Mas de repente estamos num encontro de família com o mesmo Otávio, todo mundo falando ao mesmo tempo, e aí? Aí você se lembra de Mozart dizendo, no filme Amadeus, que a ópera As Bodas de Fígaro, que acaba de compor, tem solos maravilhosos, duetos idem, também trios, “mas imagine o que são quatro, cinco, seis, setes pessoas cantando coisas diferentes ao mesmo tempo!” Pois bem, e o que Trigueiro apronta, nessa ocasião? Serve-se, mais uma vez, de um sutil macete do teatro, como no início do Hamlet:
– Bernardo.
– Ele.
– Chegou na hora.
– Meia-noite, Francisco. Vá se deitar.
Ou seja: passa-nos a informação sobre quem fala, a cada momento, sem fazer qualquer indicação explícita a respeito, ganhando a cena, com isso, vida e agilidade. No meio da conversa de todo mundo com todo mundo, por exemplo, alguém diz alguma coisa inconveniente e recebe uma “chamada”:
“Minha filha, temos visita!”
“Relaxa, Mamy!”
Words, words, words.
Por isso é genial o momento em que Otávio – produto absoluto do próprio discurso – revela-nos, coerentemente, ao entrar em coma:
Estou perdendo o domínio das palavras.
Postado por Hugo Caldas às 5:48 PM