Por Carlos Trigueiro
*publicado originalmente na revista literária DIVERSOS AFINS
Em 15.04.2014, o carteiro que entrega a correspondência do prédio onde moro no Rio de Janeiro (entre o Jardim Botânico e a Lagoa Rodrigo de Freitas), deixou na portaria, dentre envelopes, jornalecos, convites e contas, embalagem proveniente de Fortaleza (CE), identificada como livro remetido por Nilto Maciel, autor que eu sabia também pesquisador, crítico, memorialista, editor, poeta, ensaísta e ficcionista talhado, penso, no seu ambíguo fazer literário: percepção evanescente do mundo ao redor e questionamento fixo sobre a própria existência.
O porteiro do prédio costuma entregar a correspondência dos moradores pela hora da Ave-Maria (expressão varrida pelo tsunami da tecnologia). Coincide com o meu retorno da caminhada diária à borda da Lagoa Rodrigo de Freitas, após suar por quatro, cinco, seis quilômetros conforme disposição interior e reação às paisagens e segurança exterior. Sim, também poderia dizer “sôbolas paisagens” – já que “sôbolas” é expressão arcaica, quinhentista/seiscentista, e significava “sobre as” como aparece em textos camonianos.
Tão logo cheguei a casa e abri a correspondência, estava lá o último livro publicado por Nilto Maciel: “Sôbolas manhãs” (Editora Bestiário, Porto Alegre/RS, 2014, 260 páginas). A dedicatória, surpreendente para mim, não veio manuscrita na primeira ou segunda página como em seus outros livros que me presenteou, mas impressa num papelote: “A Carlos Trigueiro presenteio este exemplar de ‘Sôbolas manhãs’. Tenho dúvida de ter ou não mencionado seu nome em algum dos artigos. Não pude organizar índice onomástico. Se quiser ler ou dispuser de tempo, ficarei muito grato. Tenho certeza de ter escrito um livro de boas ideias ou, pelo menos, com o melhor dos intuitos: o de divulgar os escritores brasileiros avessos ao ‘jornalismo de resultado’, à crítica tendenciosa e aos vendedores de pedras falsas. Fortaleza, 27/3/2014.”.
Ao ler o raro título do livro e sapear capa, cores, índice e quarta de capa, logo constatei uma coletânea variadíssima, dividida em quatro partes, abrangendo crônicas, memórias, registros de viagens, artigos, críticas, e no dizer do autor: “algumas considerações, nada científicas ou acadêmicas, a respeito da gênese (no indivíduo) da escrita literária, do processo criativo e da constatação de que a minha agonia – nada tem de fantástica ou sobrenatural. Porque tudo é feito de barro e servirá a outras construções ou simplesmente será levado ao lixo ou ao cemitério do esquecimento.”.
Nem a orelha do livro, com dados biográficos do autor (nascido em 30.01.1945, no sopé da Serra de Baturité), mencionando devaneios revolucionários de adolescente, nem seus muitos prêmios literários nacionais e estaduais, nem o conteúdo dos respectivos livros agraciados, dentre outros, “Tempos de mula preta”, “Os luzeiros do mundo”, “Punhalzinho cravado de ódio”, “A última noite de Helena”, “Pescoço de girafa na poeira”, “Vasto abismo”, nem mesmo “O cabra que virou bode”, transposto para a tela (vídeo) por Clébio Ribeiro em 1993, retratariam a personalidade incrédula de Nilto Maciel, mormente nos últimos tempos, do que suas próprias palavras transcritas no parágrafo anterior.
Outros comentários de Nilto Maciel também poderiam retratar seu estado de espírito nos últimos anos. Na página 112 de “Sôbolas manhãs”, por exemplo, ele registra que, ao publicar o primeiro capítulo de “De meu sol nado”, respondeu a amigos escritores que lhe aconselhavam cuidados, isso e aquilo sobre suas citações a respeito de gênios da Literatura mundial. Daí que a certa altura dos comentários, solta bem ao seu jeito: “Tenho lido gênios e medíocres também. A vida não pode ser feita só de alturas. É preciso chafurdar na lama também. Ser porco alguma vez.”.
Em verdade, nos idos 28 de janeiro de 2013, datado por ele mesmo na página 113 de “Sôbolas manhãs”, Nilto andava às voltas com a sua coletânea de artigos de mais de trinta anos e título estranhíssimo: “Gregotins de desaprendiz.” Na ocasião, registra não conseguir ler tudo o que os numerosos amigos escritores lhe enviam (diz ter 53 livros para ler), embora vivesse exclusivamente para a Literatura, e também confessa seu comportamento suicida: “ler e escrever sem parar, beber e fumar (já parei), viver em cidade grande, dirigir carro, comer em restaurante, ver televisão, etc.”. Era assim que respirava, sofria e vivia a sua agonia literária, além de repugnar: “as editoras não investem em literatura, a mídia não dá a mínima importância ao livro…”.
Conheci Nilto Maciel em 1976, quando (aqui peço licença poética) se juntou a outros escritores “entre caminhos e palavras, diversos e afins”, e participou da invenção e publicação da revista literária “O Saco”, ousadia sem par naqueles tempos tupiniquins militarizados. E “O Saco”, esteticamente, parecia ou era mesmo não mais que uma espécie de envelope, na verdade um saco de papel encorpado, onde cabiam páginas soltas (ou quase) contendo textos literários de diversos autores brasileiros, cearenses ou não. Surpresa nacional: “O Saco” vazou sôbolas fronteiras do Ceará e inundou o Brasil.
Por acaso (ou os fantasmas que visitam os escritores me sopraram) dei de cara com a publicação dependurada numa tradicional banca de jornal chamada “Boa Sorte” no bairro do Leme, no Rio de Janeiro, na esquina das ruas Aurelino Leal com Gustavo Sampaio. Na época, morador das redondezas e antigo conhecido do jornaleiro, pedi para ver e manusear a novidade. Acabei comprando, lendo e matutando sobre “O Saco”, pois, mesmo não sendo cearense, assunto com o Ceará no meio é como ainda costumo dizer e registrar: saí do Ceará em 09.12.1956, mas o Ceará nunca saiu de mim.
Naqueles anos, eu costumava viajar muito a trabalho por nosso continental País. E calhou de, em fins de 1976, ir à Fortaleza, onde procurei a turma empreendedora de “O SACO”. Encontrei, dentre outros sonhadores, o Nilto Maciel (que me confirmou não se lembrar disso). À noitinha, num bar pelas bandas da praia do Meirelles, ou seria da Iracema ou, talvez, do Náutico — Deus saberá, diria Saramago — enfileiramos muitas cervejas regadas a conversas literárias e no idioma exaltado que a fantasia impõe aos escritores marginais. No avançar da noite, da camaradagem e conversa fiada, afiada e desfiada sobre “O Saco” (que se extinguiria em 1977), tudo entre copos, gostos, desgostos, tira-gostos e mulheres praieiras, adquiri uma tela do pintor primitivista cearense Chico Silva (sua marca registrada: briga de galos coloridos, datada de 1975) que ainda mantenho na parede do refúgio doméstico onde costumo escrever, ler e matutar.
Muito mais tarde, por volta de 1994, reencontrei Nilto Maciel (ele também nunca me confirmou isso) em Brasília, no lançamento do meu livro de contos “O Clube dos feios & outras histórias extraordinárias”, no bar CARPE DIEM que se prestava àquele tipo de evento e reunia gente de toda arte, parte e sotaque: autores, leitores, jornalistas, editores, músicos, políticos, estudantes, curiosos, servidores públicos, caçadores de autógrafos, mulheres rueiras amadoras ou profissionais. Na época, tirei pequenas férias e vim ao Brasil especialmente para o lançamento do livro no Rio de Janeiro e em Brasília, pois havia anos trabalhava no Exterior.
Depois disso, e porque a vida e o mundo dançam sem ritmo, passo, fronteira e tratos combinados, e muito menos com papel-passado, ficamos, Nilto Maciel e eu, anos e anos sem trocar palavra, mesmo tendo retornado definitivamente ao País em 1996. Porém, como disse antes, “saí do Ceará em 9.12.1956, mas o Ceará nunca saiu de mim”, e, aos poucos, tomei ou retomei contato, via publicações na internet, com alguns escritores cearenses em atividade (Raymundo Netto, Jorge Pieiro, Pedro Salgueiro, Soares Feitosa e outros).
Creio que por volta de 2010/2011 através de cruzamentos de blogs e revistas virtuais, reencontrei Nilto Maciel. E foi assim que conheci o blog “Literatura sem Fronteiras” — editado por ele — e a publicar textos de sua autoria ou de autores amigos cujas obras passavam por seu ríspido critério. Trocamos muitos e-mails, livros, informações e ideias de projetos literários até que Maciel se encorajou a publicar alguns textos de minha lavra no excelente “Literatura sem Fronteiras”.
Presenteou-me vários de seus ótimos livros, dentre outros: Contos Reunidos, Volume I e Volume II, Quintal dos Dias, Gregotins de desaprendiz, Como me tornei Imortal, Menos vivi do que fiei palavras, Os Guerreiros de Monte-Mor e o já citado Sôbolas Manhãs. Sobre alguns desses livros escrevi minhas impressões e que ele publicaria em seu blog.
Convém registrar sua predileção por colecionar e juntar manuscritos, bilhetes, cartas e afins de autores de todo gênero e de toda parte, a tal ponto que dizia ter milhares de documentos encaixotados. A propósito, narrou que, certa vez, Soares Feitosa o convidara para captar composições ficcionais de vários autores para o seu prestigioso JORNAL DE POESIA. Pois bem, Nilto Maciel enviou-lhe 500 obras! Pode-se imaginar o espanto de Soares Feitosa…
E como eu disse antes, o mundo e a vida dançam sem ritmo e passo combinados… Pois bem, Nilto Maciel convidou-me para uma conferência que iria proferir em 08.11.2011 sobre o tema “Epistolário hoje: e-mails, blogs”, nada menos do que na Academia Brasileira de Letras, no Rio de Janeiro. Claro que compareci ao evento e ouvi sua palestra (abordada no seu último livro “Sôbolas Manhãs”). Acadêmicos o receberam e Nilto Maciel saiu-se muito bem principalmente com a experiência adquirida no seu blog “Literatura sem Fronteiras”. Creio que até saiu um pouco do seu estilo áspero e provocou risos na plateia lendo pormenores e dados de seu blog. Houve bom e interessado público. À saída, entre outros seus amigos escritores, cumprimentei-o e trocamos abraços. Inutilmente, tentei lembrar-lhe do nosso primeiro encontro em 1976, mas ele me confessou quase ao pé do ouvido a penúria em que se encontrava a sua memória (fato que registrou na página 120 de “Sôbolas Manhãs”).
Nos anos de 2012, 2013 e início de 2014 trocamos muitos e-mails. E por mensagem de 18.04.2014, convidou-me para participar do seu próximo projeto literário – um livro só de entrevistas com escritores. Respondi-lhe que aceitava o convite, mas pedi-lhe um prazo para iniciarmos a entrevista, pois eu estava terminando de escrever um romance.
Em 19.04.2014, respondeu-me por e-mail dizendo-se agradecido com a minha concordância em participar do seu livro de entrevistas, e, como era próprio dele, aproveitou para criticar um de nossos amigos escritores que se recusara a colaborar em seu novo projeto. Na mesma mensagem me antecipou como seria o teor da entrevista. Aquele e-mail foi nosso último contato, já que dez dias depois, em 29.04.2014, aos 69 anos, em casa, sozinho, Nilto Maciel atravessou a fronteira final deste mundo. Recebi a triste e inesperada notícia por e-mails de amigos escritores cearenses, além de ler pela internet o resumo da fatalidade no jornal O Povo, de Fortaleza.
Numa singela homenagem ao escritor Nilto Maciel, neste conjunto de edições comemorativas pela passagem do 10º Aniversário da prestigiosa Revista “DIVERSOS AFINS”, na qual também colaborou, transcrevo abaixo o seu “PERFIL NÃO CONVENCIONAL” de autor, redigido e rememorado por ele próprio na abertura do livro memorialista “QUINTAL DOS DIAS”, e que, penso, resume convicções presentes no seu espírito:
“PERFIL NÃO CONVENCIONAL”
“VENHO DA SERRA, do verde do Ceará, mas meus pais e avós vieram do sertão seco. Do tempo do trabuco, da injustiça, da perseguição, de Antônio Conselheiro (Antônio Vicente Mendes Maciel), aquele de Canudos, que as tropas militares massacraram. Não esqueci isso. Li a História desses povos, dessas gentes. Mas li também Camões, a Bíblia, Alencar, Machado, cordel, Moreira Campos. E me pus a escrever também. Mais para relembrar aquele povo e seus descendentes. Para recriá-los. Ou mesmo criá-los, porque talvez nada exista. O que existe é a obra de arte, que é ficção. Nada é real. Quanto mais antigo mais irreal. Ninguém me conhece, ninguém me lê. Sou marginal da literatura. Há muito deixei de sonhar com glórias e famas. Tudo isso é passageiro. O que é bom fica, permanece. Sem precisar de muletas, fanfarras, galardões, medalhas. Sou apenas um escritor de poemas, contos e romances.”.
Sou Carlos Trigueiro, amazonense dos igarapés, igapós e tucumãs; paraense do Ver-o-Peso, açaí e muçuãs; cearense dos areais, coqueirais, do mar de esmeralda e dos ciriguelas nos quintais; carioca do Rio Comprido, bloco do Bafo da Onça, dos bondes com reboque e do chope à beira-mar; castelhano das ruelas e dos “bocadilhos” de Madri e, claro, dos “cochinillos” de Toledo; romano da “Via Appia”, da “Via Veneto”, do café “ristretto” e dos vinhos a granel ; chinês de Macau, provador de chás e aprendiz de “Tai-Chi-Chuan à beira do Rio das Pérolas; americano do meio oeste, curtidor do frio polar e das cafeterias de Chicago; enfim, brasileiro batizado, leitor atabalhoado e aprendiz de escritor ultrapassado.