ARRASTÃO DE LEMBRANÇAS PARAENSES

Sou paraense das águas cristalinas e azuladas do rio Tapajós banhando Santarém; da foz do rio Amazonas com seu arquipélago de ilhas e praias fluviais com nomes graciosos tipo: “Chapeu Virado” “Goiabal”, “Farol Velho”, “Vai quem-quer”, “Mosqueiro” e tantas outras – e que em certas épocas do ano tinham águas salobras em consequência da fúria oceânica sazonal.

Sou paraense do estreito de Óbidos, onde o rio é profundo e as margens estreitas, com povoados quase ao alcance das mãos, não fosse a correnteza a espalhar os caboclos canoeiros, afoitos e pedintes – “joga roupa cunhado!“- contracenando com as sombras e fachos de sol, os cantos, silvos, encantos e mistérios da selva.

Em consequência, claro, sou papa-chibé. Passeador sob os frondosos mangueirais nas calçadas de Belém e infalível chuvarada vespertina; ouvinte curioso do piar noturno e misterioso bater de asas dos famintos bacuraus nos caminhos primitivos rumo ao aeroporto de Val-de-Cãs.

Sou peregrino-mirim, com velas acesas, nas romarias e procissões de Nazaré; desconfiado provador de maniçoba nas festas juninas, mas voraz devorador de tapioca e cuscuz em qualquer época; madrugador do fabuloso mercado Ver-o-Peso: freguês das barracas com mingau de tapioca com bastão de canela ralada vez a vez em lixa, digo, língua óssea e ressecada de pirarucus.

Sou paraense dos anos 1949 e 1950, sobrinho e hóspede da Tia Sinha, na avenida Comandante Brás de Aguiar, não longe de antigo cemitério que os aplicativos atuais de mapas da internet já não acham, mas permanece nos meus labirintos da memória e na rebelde curiosidade infantil a espantar crenças fantasmagóricas ou, trocando em miúdos, o medo das almas que diziam naquele tempo – fugiam dos túmulos para assustar os irreverentes passantes noturnos.

Meninote vidrado no espremer de carocos de açaí na peneira até virar caldo na bacia de alumínio e, por fim, garapa na tigela, com ou sem farinha de tapioca, bem antes dos imigrantes japoneses adotarem espremedores eletromecânicos para comercialização da fruta em litros.

Sou paraense do tacacá fervente – égua! – na cuia, com o caldo do tucupi misturado à goma cozida, ao camarão salgado, à folha de jambu e à pimenta murupi. E durante as travessias nos barcos rumo às praias, mastigador primitivo do mexldo de carne de muçuãs – no próprio casco das apetitosas tartaruguinhas – fartamente apanhadas na ilha de Marajó e que, infelizmente, dlzem, são animais em extlnção.

Texto arrastado do livro “ARRASTÃO DE TEXTOS – Ficção de Verdade(s)”,
publicado pela 7Letras Editora/RJ

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Comentários sobre o texto podem ser encaminhados ao autor, no email
carlostrigueiro@globo.com


(1º de fevereiro/2018)
CooJornal nº 1.063


Carlos Trigueiro é escritor e poeta
Pós-graduado em “Disciplinas Bancárias”.
Prêmio Malba Tahan (1999), categoria contos, da Academia Carioca de Letras/União Brasileira de Escritores para “O Livro dos Ciúmes” (Editora Record), bem como o Prêmio Adonias Filho (2000), categoria romance, para “O Livro dos Desmandamentos” (Editora Bertrand Brasil). RJ
contato@carlostrigueiro.art.br
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