Faz uma semana que Dona Inocência, minha nova secretária, iniciou atividades no meu pequeno escritório. Na verdade, as instalações são modestas e ali só cabem mesmo duas pessoas. Ela trabalha numa improvisada antessala, e eu me dedico aos meus projetos literários num recinto mais reservado. Expliquei-lhe que, além das funções próprias de secretária, era importante no escritório que conferisse meus textos, datas de compromissos, fizesse back-up de arquivos no computador, e até decidisse a conveniência de me passar ou não algum telefonema, inclusive chamada ou mensagem no meu celular. Claro que em tais casos, por força de expressão, recomendei-lhe agir como se fosse a minha própria consciência.
Lembro que, a fim de descontrair as proverbiais recomendações do primeiro dia de trabalho, sugeri em tom de brincadeira que, doravante, ela seria “Dona Consciência” em vez de “Dona Inocência”. Ela sorriu, cruzou as pernas bronzeadas e disparou um olhar que me estonteou momentaneamente.
Ao final do intenso dia, mostrando-lhe as rotinas dos serviços, bem como outras atitudes próprias do cargo, dei-me por satisfeito e estendi-lhe a mão com amigável boa-noite. No estacionamento, peguei o meu carro e fui pra casa muito cansado. Jantei pouco, conversei superficialmente com minha mulher, Karen – contei-lhe já haver contratado a nova secretária – e disse-lhe, em tom natural, que ela se chamava “Inocência”, e, portanto, eu a trataria de “Dona Inocência”.
Recolhi-me mais cedo à quietude interior do quarto de dormir. No silêncio que se impôs, dava para ouvir o pulsar do coração. Aos poucos, a cadência das batidas foi afrouxando as amarras da vigília. E quando as grandes velas do sono se abriam para a viagem noturna, algo extraordinário aconteceu:
“Toc-toc-toc!”
Assombrado, perguntei, ou melhor, perguntei-me:
“Quem é que a estas horas bate à porta do meu ser?”
A resposta soou melodiosa, mas em tom grave:
“Tua Consciência, mas me trate de “Dona Consciência”, estou acima da tua burocracia de ficção e mentiras, daí exijo respeito!”.
Aquilo me pareceu estranho, porém me recompus e disse:
“Mas precisas bater à minha porta? Não estás sempre comigo?”.
Por incrível que eu pudesse imaginar, seguiu-se um diálogo entremeado de sons espaçados como os do fagote. E a visita feminina abriu o jogo, numa desvairada acusação:
“Deveria estar, porém me recusas faz tempo. Preferes a companhia dos teus personagens, teus escravos, pois tu os tiraniza, concede-lhes vida, manipulas seus amores e destinos, e dá-lhes a morte quando bem te apraz. Enfim, pensas que és Deus.”
“Escuta aqui, Dona Consciência, sou escritor e trabalho o tempo todo, inclusive, às vezes, até durante o sono. No meu ofício de criar coisas, pessoas, tempos, sentimentos, mundos, dimensões, ilusões e realidades, não penso ser mais do que sou, não quero ser nenhuma divindade, apenas faço o papel de Deus.”
“Vês como sou imprescindível? Precisas de mim para apontar tuas limitações e mostrar tua criação presunçosa e ilusória, já que ela nasce e morre em papel ordinário, aliás, é esse o papel da condição humana, e bem mereces meu trocadilho.”.
“Estás enganada, Dona Consciência! És totalmente dispensável, pois a mim basta a minha Musa que me acompanha aonde quer que eu vá! Nas horas difíceis me anima, compartilha as horas boas, e verte no meu pensamento a magia da criação.”.
“Escritores são burocratas da mentira organizada! Então, não percebes que musas e amores vêm e vão? E que a tua Musa é apenas um personagem a mais, talvez um instrumento, quem sabe, um oboé a soar e zoar na orquestra da tua imaginação, enquanto eu, Consciência, embora não seja de carne e osso, existo de verdade?”.
“Como és atrevida, Dona Consciência, pois só existes porque permito que existas.”.
“Estás enganado! Existo de verdade e sou a única voz capaz de soprar o que não queres ouvir, principalmente sobre a tua Musa!”.
“Como podes falar assim se nem conheces a minha Musa?”.
“Conheço a tua Musa muito mais do que imaginas. Mesmo contrariando tua vontade, nunca deixei de vigiar-te.”.
“Impossível! Guardo a minha Musa sob sete chaves, ela é literalmente proibida a terceiros e vive no mundo da inocência.”.
“Pois ela entrará no texto do próximo livro que vais escrever!”.
“Escuta aqui, Dona Consciência, estou perdendo a paciência com tanto disparate, pois, na maior inocência, nem sei qual livro vou escrever”.
“Sabes sim, não o revelaste a ninguém, mas pensas nele e eu sou a tua Consciência, leio teus sonhos, projetos e pensamentos, sei muito bem a origem e o fim de todas as tuas intenções. E sei até o verdadeiro motivo para contratares uma nova secretária com o nome de Inocência!”.
“O quê? Então queres dizer que roubas os meus segredos?”.
“Não quero dizer, eu digo mesmo de verdade! Sou a tua Consciência, não preciso roubar segredos. Meus poderes traspassam teus pensamentos, teus devaneios e também a orgia absurda que é a tua imaginação. Mesmo quando dormes, velo por ti, enquanto a tua Musa nem Deus sabe por onde anda a essas horas. E se ela é o prodígio que dizes, por que não te socorre agorinha quando sacudo teus sentimentos, espremo teus pretensos segredos e faço deles pesadelos até que sintas o suor brotar pelos poros?!”.
“Chega! Vou matar a pau teus argumentos insolentes: minha Musa é a Karen, claro, minha adorável mulher que, em sã consciência, sabe que escritores vivem no limbo das contradições, ora escrevem ou não escrevem o que sonham, ora sonham ou não sonham o que escrevem, e ponto final. Deixa-me dormir em paz.”.
*
Meu despertar não foi nada bom. Estava ensopado de suor. Mas o pior estava a caminho. Karen, desconfiada por natureza, tem sono levíssimo, além de ciúme e ouvido absolutos, foi logo dizendo que falei durante a noite inteira numa tal de “Dona Consciência”. Resmunguei algo em tom de mau humor e preferi não comentar o sonho pra lá de extravagante.
Levantei-me, fui ao banheiro, tomei uma ducha fria, vesti-me para o café e, claro, ainda estava meio distraído rememorando algumas passagens do tal sonho.
Em seguida, sentei-me à mesa e, enquanto vertia o café do bule na xícara, pressenti qualquer coisa estranha ao redor. Só então reparei que Karen, adotando expressão de terrorista, empunhava firme, a um palmo da minha jugular, a faca denteada de cortar o pão. Olhou-me fixamente e perguntou com ar tipo assim – de promotor em tribunal:
“Prove agora mesmo a sua inocência e me diga, em sã consciência, o nome verdadeiro da sua Musa e o nome da sua nova secretária!”.
Extraído do livro a ser lançado: HISTÓRIAS TIPO ASSIM: “WHATS-au-au-au-APP”
Comentários sobre o texto podem ser encaminhados ao autor, no email carlostrigueiro@globo.com
(1º de abril/2016)
CooJornal nº 978
Carlos Trigueiro é escritor e poeta
Pós-graduado em “Disciplinas Bancárias”.
Prêmio Malba Tahan (1999), categoria contos, da Academia Carioca de Letras/União Brasileira de Escritores para “O Livro dos Ciúmes” (Editora Record), bem como o Prêmio Adonias Filho (200ó), categoria romance, para “O Livro dos Desmandamentos” (Editora Bertrand Brasil). RJ
www.carlostrigueiro.com
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