Com ironia fina e humor mordaz, o escritor Carlos Trigueiro satiriza os costumes e os valores morais em “Confissões de um Anjo da Guarda” – prosas de um guardião rebelde. O escritor, pela voz de seu mensageiro celeste, expõe a natureza humana com seus vícios e fraquezas.
O indivíduo dotado de senso crítico é um rebelde por natureza, ainda que de maneira involuntária, uma vez que ele nada aceita resignada e passivamente. Curioso, investiga e questiona, constituindo ameça às verdades dogmáticas. Entre os rebeldes da mitologia cristã, há um certo arcanjo que se revoltou contra Deus e foi expulso do Céu; por sua vez, Adão e Eva, movidos pela curiosidade, rebelaram-se indiretamente ao provar do fruto proibido e acabaram banidos dos jardins do Éden.
É também um rebelde o narrador dos 11 contos que compõem o livro “Confissões de um Anjo da Guarda”, mais recente obra do escritor amazonense Carlos Trigueiro, publicada pela editora Bertrand Brasil. Inconformado com o fato de lhe negarem, durante séculos, uma audiência com o Onisciente, um anjo da guarda decide “raciocinar, em vez de acreditar cegamente em tudo” o que lhe haviam ensinado que existe. “Já desconfiava que as obras da Criação sempre estiveram a meio caminho entre a verdade e a versão”.
Ironicamente, seu nome é Mahlaliel, que, em hebraico, significa “louvando a Deus” ou “Deus mostra sua luz”. No capítulo cinco do livro do Gênesis, o nome é citado como o quinto dos dez patriarcas ante-diluvianos, descendentes de Adão.
Banimento
Por questionar a existência de Deus e tudo a sua volta, Mahlaliel é banido do convívio celeste. “Tudo começou porque pensei além do permitido nas cortes celestes. (…) Só queria saber por que Ele permite tanta desigualdade entre os homens, enquanto as demais espécies nascem, vivem e morrem sem oscilações de eqüidade, numa existência digna, do início ao fim. Também queria perguntar-Lhe olho no olho: por que entre os homens não existe nada mais distante que o próximo?”, justifica-se o narrador no início do primeiro conto, que dá título ao livro.
Com ironia fina e humor mordaz, por meio da voz de seu enfant terrible celeste, Carlos Trigueiro explora e expõe nossa natureza humana, demasiada humana, com todos os vícios e todas as fraquezas que nos cabem. Assim na Terra como no Céu, homens e anjos estão impregnados de pecados e se confundem numa coisa só, imagem e semelhança um do outro.
Logo, Mahlaliel considera: “(…) melhor confessar de uma vez que os anjos varrem a imundície do Céu para debaixo das nuvens. E como não só o mau exemplo, mas também todas as porcarias costumam vir de cima, está mais do que explicado porque os humanos pegam, pensando que é de Graça, tudo que não presta”.
O autor utiliza-se de elementos fantásticos (presentes em quase todas as histórias) para satirizar, por exemplo, costumes, valores morais e preconceitos típicos do senso comum. O racismo é um dos alvos em “Uma Questão de Cor”, que versa sobre o amor proibido entre dois adolescentes. No conto, a moça branca é proibida pelo pai de namorar um rapaz negro – ainda que o moço seja o melhor aluno da escola. No fim, o racista sente na pele, literalmente, o peso do castigo.
Crítica Social
“O Sexo dos Anjos”, um bancário perde seu emprego e, sem muitas perspectivas, aceita trabalhar no sex shop “Organizações Paraíso”. De quebra, o autor dá uma alfinetada na castidade do clero, com suas freirinhas assanhadas que freqüentam a loja em busca de um produto chamado “o sexo dos anjos”.
“Anjos Exterminadores”, por sua vez, é um retrato da criminalidade que tem em suas origens a desigualdade social. Com um ritmo ágil, quase jornalístico, narra as desventuras de alguns menores de nomes sugestivos, como C.P.F. (vulgo “Papelote”?), I.N.S.S. (“Tira-Gosto”) e P.M.D.B. (“Safadeza”) ? sem anjo da guarda para protegê-los, nenhum desses jovens consegue escapar do anjo da morte, que os espreita.
A dupla “diabólica” Mercado e Sistema também não escapa da mordacidade de Carlos Trigueiro. No conto “O Jornalista”, o diabo em pessoa aparece para um repórter em busca de informações que o ajudem a salvar o Inferno de uma avalanche de pecadores, evitando um problema de superlotação – semelhante ao de muitos presídios brasileiros.
Como bem definiu o jornalista Luís Antônio Giron, da revista “Época”, “entre as virtudes da ficção de Carlos Trigueiro figuram o sarcasmo, as frases extensas e os temas impróprios… O ficcionista brilha… comete um ato literário perfeito”.
Leia sem parar
Carlos Trigueiro
Confissões de um Anjo da Guarda
Bertrand Brasil – 120 páginas
Quanto: R$ 25, em média
Trecho do livro
Tudo começou porque pensei além do permitido nas cortes celestes. Aliás, porque solicitei ao arcanjo de plantão, dezenas, centenas de vezes, um encontro com Ele – o Onisciente, ou Architecto, como alguns preferem. Só queria saber por que Ele permite tanta desigualdade entre os homens, enquanto as demais espécies nascem, vivem e morrem sem oscilações de eqüidade, numa existência digna, do início ao fim. Também queria perguntar-Lhe olho no olho: por que entre os homens não existe nada mais distante que o próximo?
Mas o encontro me foi negado durante séculos. “Quem duvida dos Seus desígnios não merece ir à Sua presença” era a desculpa que sempre me davam. “Mandou-O para aquele lugar”, pensará o leitor impaciente, sequioso por dissensões, rompimentos, querelas. Mas não o fiz. Não teria sentido contraria voz uníssona: “Ele está em toda parte.” Continuei aguardando um encontro, mas séculos se esfumaram. Resultou que nunca O vi.
Então, decidi raciocinar, em vez de acreditar cegamente em tudo o que me haviam ensinado que existe. Ou no que sempre existiu. Concluí: impingiram-me crer não só que Ele existe, mas também na necessidade de que Ele exista. E se perpetue. Ora, acreditar na idéia de que alguém, há bilhões de anos, tenha bancado, incógnito, sozinho, a construção do Universo sem levar nenhuma vantagem, já é suficiente para desconfiar do que estamos fazendo aqui. E aparentemente de modo gratuito.
Por isso questionei não só a Sua existência, mas também tudo em volta. Constatei que a versão dada à origem do Universo e a sua parafernália infinita era maior que a verdade. Não cheguei a me decepcionar. Já desconfiava que as obras da Criação sempre estiveram a meio caminho entre a verdade e a versão. Ou, no mote cibernético, entre o real e o virtual.
Por Tiago Zanoli
Fonte: http://gazetaonline.globo.com/index.php?id=/local/minuto_a_minuto/local/materia.php&cd_matia=12090