Meus fantasmas de escritor
Ernesto Sábato (1911/2011) em “O Escritor e seus fantasmas” (Companhia das Letras, tradução de Pedro Maia Soares, 2003)reúne reflexões antológicas sobre o seu destino de escritor. Fez de “Por que, como e para que se escrevem ficções?” a sua temática obsessiva e que sempre o perseguiu desde que começou a escrever. Somente com o passar do tempo, e sob o foco permanente de intensas reflexões, iria concluir: “motivações obscuras levariam um homem a escrever, séria e até angustiadamente, sobre seres e episódios que não pertencem ao mundo da realidade…”
Noutra reflexão notável, diz: “A literatura, essa expressão híbrida do espírito humano que se encontra entre a arte e o pensamento puro, entre a fantasia e a realidade, pode deixar um testemunho profundo deste transe e talvez seja a única criação que pode fazê-lo”. E cita Balzac (1799/1850): “Hoje, o escritor substituiu o padre, vestiu a clâmide dos mártires, sofre de mil males, toma a luz de sobre o altar e a difunde no seio dos povos; ele é príncipe, ele é mendigo; ele consola, ele maldiz, ele ora, ele profetiza.”
Sobre o gênero romance diz…“é como a história e como o seu protagonista, o homem: um gênero impuro por excelência”… “Somos imperfeitos, nosso corpo é frágil, a carne é mortal e corruptível. Mas, por isso mesmo, aspiramos a algo que não tenha essa desgraçada precariedade…”. “Ao erguer-se sobre as duas patas traseiras, este estranho animal abandona para sempre a felicidade zoológica e inaugura a infelicidade metafísica que resulta de sua dualidade: fome desmedida de eternidade em um corpo miserável e mortal”… “Então começam as perguntas: existe algo eterno além deste mundo transitório e em perpétua mudança? E se existe, como podemos alcançá-lo, mediante qual intermediário, graças a que fórmula mágica?”.
A propósito dessas perguntas, entro com as minhas impressões. Sempre achei que escritores convivem com algum tipo de fantasma, ou seja, o “intermediário” de que fala Sábato. Sabe-se lá se com um, dois, três ou vários fantasmas. Só que não são fantasmas comuns, aqueles entes do imaginário clássico, assombrações que vestem lençóis, arrastam correntes, moram em casas abandonadas, surgem por entre as névoas dos pântanos ou das trevas noturnas. Ao contrário, são fantasmas familiares, raramente só visitantes, mas muitas vezes são fantasmas de idos escritores. São fantasmas que vigiam, cercam, protegem ou perseguem os escritores nas horas mais insólitas, nos momentos mais imprevisíveis. Não importa se é noite ou pleno dia, nem se o escritor trabalha, descansa, caminha, viaja, perambula, vagueia, medita, dorme ou sonha.
O que realmente desejam esses estranhos, digamos, seres? Por qual motivo precisam manifestar-se, visíveis ou não, através de um sopro, espasmo, uma inspiração, cutucada ou aparição, sem a menor cerimônia, para insinuarem uma observação, uma censura, uma frase, uma nota musical, um verso, um poema, uma ode, um ensaio, um conto, um haicai, uma crônica, um artigo, parte de um romance ou até um romance inteiro?
Ao ler “O Escritor e seus fantasmas” perfilhei, sem titubear, as abstrações de Sábato. E sem nenhuma pretensão, muitas de suas observações já me eram tão familiares como se eu mesmo as tivesse escrito. Ou para ficar no tom desta abordagem, era como se fantasmas comuns nos visitassem: a mim, aprendiz de escritor, e ao notável escritor argentino. Mais tarde, outras experiências vividas com a Literatura fizeram-me crer que os escritores não só convivem com fantasmas, mas também eles mesmos são uma espécie ou família de fantasmas. Claro que fantasmas ainda impuros, terrenos, sofredores, infelizes, inconformados com a sua finitude temporal, desprovidos de meios conscientes para assimilar uma improvável transcendência imaterial, esotérica, cósmica ou qual nome queiramos dar a essa questionável sublimidade
Quando eu estava organizando “Meu Brechó de Textos” –– coletânea de escritos pinçados dos meus romances, contos, artigos, ensaios, poemas, fábulas, enfim, de textos que publiquei e de outros que não publiquei porque os guardei, ou porque os perdi, e que por qualquer razão os reencontrei – tão logo relia uma frase, um aforismo, um epigrama, um verso, vinha-me à memória como as palavras foram parar ali e daquela forma associadas. Visitava-me uma espécie de visagem daqueles edifícios literários em que as palavras serviram de tijolos da construção. Mas que argamassa mágica uniu os tijolos com tal precisão? Que tipo de inspiração arranjou e cimentou aqueles tijolos de forma a dar-lhes o senso comum de obra literária? Se admitirmos a inquietude permanente que lateja no íntimo do escritor como sua matéria prima indispensável, poderemos pensar que o seu universo – caos de emoções, trevas, vícios, pa ixões e flagelos da alma – só é alcançável (e manejável) com a intervenção de seus fantasmas.
Nesse arcabouço de ideias e a propósito de alguns livros que publiquei, penso que minhas “Memórias da Liberdade” foram arrumadas por seres fantásticos dos igapós amazônicos e, mais tarde, por fantasmas de jangadeiros que eu costumava encontrar nas praias cearenses beijadas por ondas de esmeralda. E que os contos em “O Clube dos feios” foram soprados por fantasmas imersos no fog londrino quando periodicamente para ali eu viajava a trabalho, mas sempre conseguindo escapulir por algumas horas a fim de me entreter com os sussurros marginais das travessas nevoentas da antiga Albion. E que o romance “O Livro dos Desmandamentos” me foi soprado por fantasmas de meus ancestrais, coronéis, majores, repentistas, cangaceiros, matutos, mulheres rueiras ou beatas, em versões a perder de vista na secura da caatinga. E que as “Confissões de um anjo da guarda” me foram sopradas por fantasmas da Renascença que me acolheram no s meus tempos de estudante na Itália, onde, não raro, me perdia nas praças, galerias, igrejas, muralhas e ruínas milenares. E que o romance “Libido aos pedaços” me foi sugerido por fantasmas, de certa forma meus contemporâneos e familiares, quando trabalhei como datilógrafo num sanatório psiquiátrico durante a minha adolescência.
Deixo “O Livro dos Ciúmes” para este fecho porque outros fantasmas já haviam profetizado que tal livro iria aparecer nesta Revista. Bem, um resumo do livro em si bemol maior. Tudo começou quando, numa noite invernal, um velho escritor espanhol foi despertado por estranho vozerio vindo de sua biblioteca. O ancião levantou-se e foi verificar o que se passava, e teve a mais incrível das surpresas. Estavam ali reunidos todos os personagens dos livros que escrevera. Discutiam calorosamente, em forma de assembleia, quem sopraria as histórias para a próxima obra do velho escritor. Depois da discussão, decidiram: que o tema da obra seria o ciúme; que o título seria “O Livro dos Ciúmes” e composto de doze histórias; que tempo, lugar, personagens, indumentárias, perfis psicológicos e biotipos seriam escolhidos exclusivamente pelo narrador, aliás, narradora, a Musa dos Ciúmes, que também comparecera à fantástica reunião; qu e as histórias seriam ao estilo das “Mil e uma noites” e sempre encadeadas pela frase “No dia seguinte, a musa me soprou esta história que adaptei aos tempos e quadrantes da vez. Ah, sim, faltou dizer que a Musa dos Ciúmes era uma belíssima cigana, de nome familiar, “Lu”, e que falava com forte sotaque andaluz. (pg. 23 do Livro dos Ciúmes).
Fonte: revista andaluz