Natal, 28 de Novembro de 2011 | Atualizado às 11:23
Nelson Patriota [ Escritor ]
Se tempo e espaço são elementos indissociáveis do romance, elementos subsidiários como a metáfora e o aforismo podem às vezes ocupar as colocações mais importantes de uma narrativa estendida, como prova esse “Libido aos pedaços”, do cearense Carlos Trigueiro, e que chegou às livrarias natalenses em setembro último. O livro é o segundo volume da “Trilogia da Confissão”, iniciada com “Confissões de um Anjo da Guarda” (2008), mas pode ser lido independentemente desse último, com o qual guarda em comum apenas o pendor confessional dos personagens.
Experimentado no conto, gênero que domina com mestria desde os primeiros títulos, como “O Clube dos Feios”, “O Livro dos Ciúmes”, “Livro dos Desmandamentos” e o já citado “confissões de um Anjo da Guarda”, esse novo livro de Trigueiro é uma imersão profunda nas motivações don-juanescas de Otávio Nunes Garcia, ou, nas palavras desse personagem, no “pathos predatório da animalidade”.
Biólogo, rico, destituído de laços familiares depois da morte dos pais, Otávio é um predador de fêmeas, sem distinção de idade, cor ou credo e se o núcleo de “Libido aos pedaços” é a relação que ele mantém com a cunhada Larissa, aliás, sua analista, o leitor não tarda a perceber que outra cunhada, Giovanna, mas também a mãe desta, e mais a governante e sua filha, bem como as primas da esposa Débora são troféus colecionados por esse Príapo moderno que apresenta um traço distinto do seu antecessor mitológico: apresenta graves conflitos de consciência.
Daí que a libido flui aos pedaços nesse livro que revela um Trigueiro perfeitamente à vontade na criação do seu biólogo Casanova, envolvido num romance familiar previamente anunciado por sua analista, autora que é de uma tese justamente intitulada “Amor em família”. É que diversamente de seu antecessor florentino, esse outro Casanova tem uma idiossincrasia: só namora mulheres “mais chegadas, próximas, familiares”.
À maneira de um La Rochefoucault, Trigueiro sabe extrair sentenças e aforismos do romance em família em que seu protagonista mergulha de cabeça. E esse é um lado essencial para animar a narrativa memorialista que, como o leitor perceberá no final, não é unânime, embora “majoritária”. Isso, apesar da interferência “inoportuna” da Dra. Larissa, num apêndice ao livro e que prova ser a única voz dissonante no concerto póstumo do narrador.
Ao adentrar as páginas de “Libido aos Pedaços”, o leitor vai fruir um texto que, se por um lado prima pela estética frasal, não se sai menos bem na construção do aforismo, da sentença breve e exata que é capaz de desnortear e arrancar do leitor um sorriso de cumplicidade e aprovação. Afinal, quem não tem uma história de vida nessa área do romance em família ou, dito de modo mais elástico, em sociedade, na medida em que se trata de uma área em que todos ingressam imaturos e inexperientes?
Isso explica, por exemplo, que o autor se atreva a usar e a abusar do aforismo em seu sentido clássico, como o fez o velho La Rochefoucault, e como o faria mais tarde um Oscar Wilde ou, mais recentemente, um Nelson Rodrigues, a quem tomou emprestada a epígrafe: “Quem nunca amou a cunhada não sabe o que é o amor”. E em seu reforço, trouxe à tona duas ou três dúvidas sobre o relacionamento de Sigmund Freud com sua cunhada Minna Bernays a qual, aliás, “ficou solteira a vida toda”.
Daí também Trigueiro, ou melhor, Otávio Nunes Garcia, poder afirmar, no mesmo diapasão, que “o melhor tempero da vida está no festival de imprudência que cometemos”, ou que “acho intolerável essa cobrança sociocultural de esperar comportamento monocórdio das pessoas” ou, ainda mais áspero, “sei de casamentos em que o tempo apodreceu os cônjuges”. Dar-se-ia o caso de mais um libelo contra o casamento? Cabe ao leitor conferir.