Meninos de hoje, da cidade grande,
metidos em roupas e sapatos coloridos
de famosas marcas de consumo,
disputando com automóveis, ambulantes, transeuntes,
um pedaço de chão, de calçada, de fumo,
para expandir as energias da idade,
ou sentados com impropriedade, em sofás de espuma,
à frente da televisão, alimentando a imaginação
com produtos nem sempre recomendáveis
à vitalidade instintiva e à formação;
ou folgando com jogos que brincam sozinhos
e não deixam ninguém brincar.
Tudo contrasta com o espaço-tempo dos meus tempos,
dos quintais imensos ladeando igarapés,
terrenos sem cerca, muro, limite.
E o mundo sem confins nem fronteiras
eu abarcava de uma vez: ora correndo, sem barreiras,
pelo areal das brancas dunas cearenses —
da praia do Meireles, do Mucuripe, da Iracema —
ora vivendo os “Meus oito anos” de Casemiro
por doze ou treze, sei lá quantos, cem talvez.
Não havia cor que não reconhecesse,
som ou ruído que não identificasse:
cumprimentos de bem-te-vi, pipira ou bacurau,
lamentos de “fogo pagou”, arrulhos de bem-querer.
Tempos de liberdade incondicional:
estendia a palma das mãos contra o vento
sentindo-o esgarçar-se por entre os dedos
como assobio vivo rumo ao sem-fim dos mundos;
fazia duma canoa parte de mim mesmo
e deslizava pelas águas, remo a dentro,
a bombordo, estibordo,
comandando com garbo e poder (sem o saber)
o rumo, a corrente,
a vida,
muito além dos bordos convencionais;
abria um favo de ingá maduro
e sugava a doce neve das sementes
com a boca ávida, glutona, humana,
sem modos, estilo, educação,
língua entre dentes, incisivos a meio caminho,
degustação só comparável
à da costela do tambaqui moqueado
e na folha da bananeira servido.
Correr, pular, saltar,
à beira-mar, à beira-rio, à beira-beira,
sobre troncos, folhagens, palmas,
espumas, algas e conchas,
o peito nu,
calças curtas, longas idéias,
pés no chão, bichos no pé,
asas nos braços, solto, magrela,
lépido, feliz, pujante,
mais livre que a piçarra deixando a baladeira;
perseguia tijubinas nas capoeiras
e vaga-lumes nas tocas da noite;
ouvia seresta de grilos ao clarão do luar
e estórias da Mãe-Dágua, da Cobra-Grande,
da Matintaperera, do Padre Cícero,
de cangaceiros, Lampião e Maria Bonita,
ou ainda a sinfonia dos carapanãs
em torno do mosquiteiro
até que a boca do sono,
maior do que a boca da noite
engolisse as fantasias que desfilavam na cumeeira.
Garotava nos quintais perdidos,
futebolava nos terrenos baldios,
cochilava à sombra das mangueiras,
jogava bolinhas de gude, empinava papagaios…
De dia, colhia frutas no pé,
de noite, derribava estrelas no céu;
despertava todas as manhãs, muito cedinho,
com o punho da rede gemendo
e a voz de Deus sussurrando:
“Vai-te, és mais poderoso que a Liberdade!”
E eu ia.
E eu era.
Texto extraído do livro “Memórias da Liberdade”, Ed. Espaço Jurídico – Rio de Janeiro (RJ), pág. 15
Fonte: Releituras