Revista Bula | 03/11/2008 – Entrevista Carlos Trigueiro

Verdade que dificuldades para publicar ocorrem mundo afora, pois a realidade dos escritores está no idealismo escatológico, enquanto a dos editores exige pragmatismo aritmético

Quando li pela primeira vez “O Clube dos Feios”, do amazonense Carlos Trigueiro, fiquei, além de muito bem impressionado, surpreso. Não parecia coisa de brasileiro. Tinha uma certa elegância, uma certa aristocracia, parecia coisa de estrangeiro. Não que brasileiros não saibam ser elegantes. Há vários prosadores em atividade que merecem o adjetivo. Mas Trigueiro é diferente. Há um cosmopolitismo genuíno, não forçado, em sua prosa. O que será fácil entender, se dermos uma olhada em sua biografia : graduado em Administração Pública pela Fundação Getúlio Vargas, Trigueiro morou em cantos diferentes do mundo (Espanha, Itália, China, EUA). Agora, morando no Rio de Janeiro (parece que quietou), acaba de lançar “Confissões de um Anjo da Guarda”, pela Bertrand Brasil, e concedeu essa entrevista à Bula e ao Rascunho por e-mail.

Conte pra gente um pouco de sua história, digamos, editorial. Você teve dificuldade pra publicar algum de seus livros?

Tive dificuldades de todo tipo, de impublicáveis a novelescas. Já no meu primeiro livro, “Memórias da Liberdade” (1985), financiei a edição, mas a editora quebrou sem cumprir o contrato. Na época, eu trabalhava na China, e tive de acionar o editor no Brasil. À vista da morosidade da nossa Justiça, resolvi o assunto mediante acordo: utilizei o selo da editora e o que já havia sido produzido do livro, e tornei a financiar o restante da produção por meio de outra editora. Com o “O Clube dos Feios” (1994), sucedeu algo tão surrealista quanto o conteúdo da obra. Estando o livro bem-figurado, bem-lançado, e bem-aceito pela crítica, a editora foi desativada. Reassumi tudo em Cartório: direitos autorais, estoque, divulgação, distribuição e comercialização. Depois que a Record, editora de porte internacional, adquiriu os direitos de “O Livro dos Ciúmes” (1999) e rapidamente o publicou, os caminhos estavam aparentemente facilitados, mas surgiu outro tipo de dificuldade: performance de vendas abaixo da expectativa. Então, fiquei cinco anos provando recusas de padrão olímpico até chegar à Bertrand Brasil e publicar “O Livro dos Desmandamentos” (2004) e “Confissões de um Anjo da Guarda” (2008).

Essas dificuldades trouxeram alguma lição?

Se pudesse voltar ao passado e primeiro livro não assinaria Carlos Trigueiro, e sim algo como Karlowz Tryghwro, pois a preferência brasileira, submetida às forças do mercado e marketing dos best-sellers internacionais, prima por autores com Y, K e W no nome. Basta acompanhar a lista dos mais vendidos. Verdade que dificuldades para publicar ocorrem mundo afora, pois a realidade dos escritores está no idealismo escatológico, enquanto a dos editores exige pragmatismo aritmético. A propósito, o crítico literário italiano, Mário Baudino, revelou num livro curioso “Il Gran Rifiuto” (1991), algo mais freqüente do que se imagina: obras recusadas por editores se tornarem notáveis, dentre tantas, “Cem anos de solidão (Gabriel García Márquez); “O Gattopardo” (Tomasi di Lampedusa); “Em Busca do Tempo Perdido” (Marcel Proust); “Moby Dick” (Herman Melville); “Ulisses” (James Joyce); “Lolita” (Vladimir Nabokov); “Poesias” (Thomas Eliot); “Torrentes da Primavera” (Ernst Hemingway); “O Amante de Lady Chatterley” (D.H.Lawrence); “O Senhor dos Anéis” (John Tolkien). Se Baudino aguardasse mais cinco anos acrescentaria entre os recusados, o fenômeno universal “Harry Potter” (J.K.Rowling). Daí o paradoxo: um livro recusado por mais de oito editores, deve ser bom mesmo! Então, perseverar é a lição.

Se tivesse de classificar sua ficção, como o faria? A que estante de livraria ela pertence? (Não vale dizer só “literatura nacional”)

Tento fazer Literatura de ficção afinada com o que percebo da condição humana (universal em inclinações, esperanças, fraquezas, distúrbios, limitações) fustigada pela consciência da temporalidade – da impermanência. Talvez uma biografia repleta de mudanças geográficas e o contato com diversos ambientes socioculturais tenham acelerado minha percepção da temporalidade que, acho, mais nítida que a consciência da morte, é a nossa fonte de inquietação de todas as horas. Embora essa consciência esteja presente em outras artes, na Literatura é transcendental. Há inúmeros exemplos dessa fixação humana na temporalidade, a começar pela infinidade de “Memórias” publicadas em todos os quadrantes. Às vezes, essa fixação já aparece no título dos livros. A obra-prima de Proust é “Em Busca do Tempo Perdido”, enquanto “Cem Anos de Solidão” a de Gabriel García Márquez. Nas elocubrações de Ítalo Svevo (em “A Consciência de Zeno”) o tempo é tanto memória quanto profecia. E Faulkner é pungente: “… cada homem vem a ser a soma das suas desgraças. Se ocorre a alguém pensar que um dia essa desgraça termina, bem, nesse caso, a desgraça é o tempo”. Então, minha ficção, com a devida condescendência, não iria para uma estante com identificação geográfica (de nacionalidade), preferiria que ficasse no âmbito do pensamento de Sábato: “… o escritor é testemunha e mártir do seu tempo”.

Quando eu vi “O Clube dos Feios” num sebo o título e a capa me chamaram imediatamente a atenção. Decidi dar uma chance a um autor e uma editora dos quais eu nunca tinha ouvido falar. Não me arrependi. Quem bolou a capa? O que é feito da editora Artes & Contos? De onde surgiu a idéia pro conto-título?

A editora Artes & Contos funcionou pouco tempo (olha o tempo aí de novo!). Quanto ao título “O Clube dos Feios” houve divergência entre autor e editora, pois outro conto da mesma coletânea, “O homem que perdeu o dia a dia” (olha o tempo de novo aí!”), explorando o desconforto psicológico das pessoas que se aposentam, era o preferido da editora, tinha mais apelo. No entanto, além de considerar “O Clube dos Feios” mais do que um conto (quase uma novela), eu já vislumbrava a idéia da “feiúra” humana não só no plano estético, mas também no emocional e no social. Enfim, o embrião da “Trilogia da feiúra” fervilhava. Prevaleceu a minha idéia e o título ficou “O Clube dos Feios’ – e outras histórias extraordinárias”. Quanto à capa impactante, foi realmente um achado. Tendo “O Clube dos Feios” conteúdo estritamente surrealista, fui buscar num dos pilares do Surrealismo, no belga René Magritte, uma reprodução fotográfica da sua “La lampe philosophique”, um óleo de 1936, e que encontrara nas minhas andanças por livrarias, bibliotecas e sebos de Chicago.

Seus contos saem completamente da linha urbano-violento-escatológica, de certa forma predominante no Brasil. São eruditos, filosóficos, bem-comportados, mágicos, enfim, parecem ter sido escritos por um estrangeiro (não que não haja brasileiros eruditos e bem-comportados, ou que a linha urbano-violenta-escatológica seja ruim). Embora nascido em Manaus, morou em várias partes do Brasil e do mundo. Será essa a causa? Você se desenraizou?

“Fiz o que pude, o destino o que quis” é uma frase de Lope de Vega bem a calhar. Imagine um jovem curioso – de raízes amazonenses, alma cearense, coração carioca, sonhos de brasileiro – tendo oportunidade de ler, estudar, trabalhar, observar, comparar, viver na Itália, Espanha, China e nos Estados Unidos, além de viajar alhures… Acho que tudo que fizesse com pretensão literária agregaria alguma dose de cosmopolitismo. Quanto ao lado mágico e (quem dera) filosófico da minha literatura, talvez seja influência dos autores que li, dos ambientes fascinantes que vi e em que vivi, e, claro, da índole observadora. E sobre o lado bem-comportado em toda a minha ficção, isso é verdade, não há nem mesmo um único palavrão explícito. Nada de falso puritanismo, mas porque, penso, a emoção artística talvez seja a única preciosidade da condição humana. Acho que, no gênero literário maiúsculo, quando a palavra vaza pornografia ou ejacula obscenidade torna aquilo que descreve muito real. Roland Barthes dizia que as pessoas não querem a paixão, mas a imagem da paixão. Na minha percepção, recorrer à verbalização grotesca para desnudar tanto o instinto quanto o passional borra a essência mágica da Literatura. Essa, num plano superior, deveria apenas sugerir e insinuar imagens ao leitor. Se isso não acontece o papel sagrado do livro vira papel de embrulho, papel sanitário. Quanto ao meu desenraizamento, bem, foi provisório. Não perdi minhas raízes. Tanto assim que “O Livro dos Desmandamentos – Profecias de um Excluído” (Bertrand, 2004) procura eviscerar com o gume da alegoria as misérias sociais e políticas do Brasil nos últimos cinqüenta anos, e “…serve de instrumento relevante para entender os excessos políticos impostos aos analfabetos e miseráveis do país”, segundo resenha do livro na Biblioteca do Congresso, dos Estados Unidos, claro, sabemos que “santo de casa não faz milagre”.

Alguns de seus contos parecem impregnados de filosofia fenomenológica (Heidegger, Husserl). (Por exemplo: Terminais”) É consciente?

Talvez seja mais intuitivo do que consciente. Só fui saber um pouco da filosofia alemã nos bancos universitários, enquanto bem cedo, e ao vivo, impactos existenciais pesavam na minha formação psicológica. Em “Memórias da Liberdade”, isso já aparece no menino de sete ou oito anos, no interior do Amazonas, numa canoa, seminu, inculto, sem nenhuma fobia freudiana, nenhum desejo de reconhecimento lacaniano, admirando a grandiosidade das águas e da floresta, o vôo da passarada, a necessidade de perceber a essência das coisas para viver e sobreviver. Depois, outro impacto: ainda adolescente, trabalhei num sanatório psiquiátrico, onde pude encarar as mil faces da angústia, perceber a precariedade da existência, os absurdos do comportamento humano, ter consciência do caminho indesviável para a morte. O conto “Terminais” reflete o aprendizado desta fase, digamos, hospitalar. Mas o esbocei quando vivia na China, que também foi uma experiência tremenda: tentar compreender a existência sob a interpretação de uma cultura que há 5.000 anos observa, naturalmente, a essência das coisas.

Também será consciente a recorrência de certos temas e idéias? Por exemplo, é comum que seus personagens façam parte de (ou sejam apresentados a) algum clube secreto, sociedade esotérica. Ainda: o casal Peterson-Anita (de “Obsessão”, em “Confissões de um Anjo da Guarda”) é o casal A e B (de “Ciúme, tronco e membros”, em “O Livro dos Ciúmes”)? E mais ainda: a utilização de um fio condutor amarrando os contos ( a musa e o anjo da guarda).

A recorrência é consciente. Concebi “O Clube dos Feios” e a “Associação dos indivíduos de apelido Cheong” num mesmo tempo psicológico vivido entre Roma e Londres, embora a centelha inspiradora de ambos ocorrera antes, na China, onde eram comuns associações de pessoas com pré-nomes iguais com o intuito de defenderem interesses pessoais ou familiares.

Quanto aos casais Peterson e Anita de “Obsessão” (em “Confissões de um Anjo da Guarda”) e A e B de “Ciúme, tronco e membros” (em “O Livro dos Ciúmes) são personagens diferentes apesar de viverem tragédias parecidas. O texto que descreve sexualmente A e B tem um artifício que demonstra isso. O resto é com o leitor.

Também são estruturais e conscientes tanto a musa dos ciúmes em “O Livro dos Ciúmes” quanto o anjo Mahlaliel em “Confissões de um Anjo da Guarda”. A rigor em “O Clube dos Feios” a idéia de um fio condutor chegou a me perpassar e, no caso, seria o espelho egípcio mágico que encerra o conto, mas, na época, o artifício não amadurecera por completo.

O saboroso conto “A Quarta concubina” (em “O Livro dos Ciúmes”) daria um romance, certamente também saboroso. Você já pensou nisso?

Sim, quando escrevia a história. Considero “A Quarta concubina” (em torno de quarenta páginas) mais próxima da novela que do conto. A propósito, o cineasta Zhang Yimou fez um filme belíssimo (“Lanternas Vermelhas”) baseado em romance do escritor chinês contemporâneo, Su Tong, explorando o mesmo tema: a permissão social para o múltiplo concubinato na China, desde que o “dono” das concubinas pudesse sustentá-las “com dignidade”. Na minha temporada por lá, antes de Hong Kong e Macau retornarem ao domínio da China continental, essa conotação sociocultural depreciativa da mulher me causou forte impressão.

Em seu último livro, “Confissões de um Anjo da Guarda”, noto uma certa tendência até então inexistente em seus contos. “Uma questão de cor”, “O jornalista” e “Clínica para normais” são um tanto doutrinários, o que, penso eu, os empobrece um pouco. É mesmo uma tendência? E (de novo) é consciente?

É consciente, porém menos tendência e mais coerência com o propósito da obra, já que o anjo Mahlaliel enfatiza no conto que dá nome ao livro: “Tudo começou porque pensei além do permitido nas cortes celestes… Tornei-me um anjo da guarda dissidente… Quero abalar crenças e descrenças… Então, melhor confessar de uma vez que os anjos varrem a imundície dos céus para debaixo das nuvens. E como todas as porcarias costumam vir de cima, está mais do que explicado por que os humanos pegam, pensando que é de Graça, tudo que não presta.”

Hoje, mais maduro, estou convencido de que cada leitor percebe aquilo que lhe interessa. Se existe algum tipo de doutrinação deliberada no livro talvez esteja mais visível nesta confissão de Mahlaliel: “Ressalvo que o ato de contar histórias é invenção do homem. Somente o gênero humano é capaz de falsear e subverter o uso da língua de tudo quanto é maneira, desde promessas de políticos em campanha, ao tropismo boca a boca nas imagens de telenovelas – delito que uma parcela das elites comete, outra propaga, outra custeia, outra acoberta. Delito em cadeia, como se vê. Mas é só trocadilho, ninguém vai preso.”

Enfim, me permitindo parodiar o pensamento de Sábato, diria que o escritor é testemunha, verdugo e mártir do seu tempo.

Por Flávio Paranhos

Fonte: http://www.revistabula.com/posts/entrevistas/entrevista-carlos-trigueiro

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