“Revista Diversos-Afins nr.63 sobre Libido aos pedaços” 30/11/2011

Fonte: http://www.diversos-afins.blogspot.com/

PEQUENA SABATINA AO ARTISTA
Por Fabrício Brandão

Talvez seja muito difícil precisar quando um autor se aproxima daquilo que podemos atribuir de maturidade literária. Talvez ela propriamente nem exista e estamos aqui a divagar sobre algo assemelhado ao que poderia ser uma espécie de Olimpo da criação, objeto supremo e quiçá inatingível. Insistindo no tema, melhor seria crermos num grande escritor como sendo um porta-voz de nossa míope condição de mortais. Alguém que nos mostrasse a cada compasso de palavras as incomensuráveis artimanhas do ser. Tudo isso fica mais palpável quando o elo entre criador e leitor acontece no tácito jogo das interpretações, ainda mais reconhecendo que a perfeição, definitivamente, não combina com os humanos.  Sensação semelhante pode ser percebida no contato com a obra do escritor amazonense Carlos Trigueiro.  Seu olhar pungente sobre a natureza  dos homens desmistifica toda e qualquer tentativa de entendermo-nos como seres dotados de excelência.

Como bom ficcionista que é, Trigueiro já nos ofertou, em obras como O Clube dos Feios & Outras Histórias Extraordinárias (Artes & Contos), O Livro dos Desmandamentos (Bertrand Brasil) e Confissões de um Anjo da Guarda (Bertrand Brasil), indícios de que o mundo em que vivemos é passível de adequadas doses de estranhamento. Mesmo com um viés crítico da realidade, muitas vezes fio condutor de seus escritos, não busquemos no autor o discurso de uma supremacia da racionalidade humana. Diante do seu mais novo rebento, Libido aos Pedaços (Record), a temática do desejo subverte algumas noções a que estamos acostumados. Permeando as vias da psicanálise, o livro ocupa um lugar especial pela capacidade de confrontar os discursos masculino e feminino, cabendo ao leitor tecer suas próprias conclusões sobre os reais efeitos de tais oposições do pensamento. O fato é que Carlos Trigueiro surge agora com um romance moderno e vigoroso, cujo domínio da linguagem, e a precisa construção textual pautada num tom confessional conferem à obra um lugar de destaque, quiçá leitura imprescindível face à chamada pós-modernidade. Para falar um pouco sobre todas estas coisas, eis aqui o autor novamente a dialogar com a Diversos Afins.

Carlos Trigueiro
Foto: arquivo pessoal

DA – Libido aos Pedaços ousa tocar de modo bem incisivo no labirinto dos desejos humanos, tendo como pano de fundo os desvarios de nossa pós-modernidade. Sob a ótica dos sentimentos, acredita estarmos vivendo uma era algo perturbadora?

CARLOS TRIGUEIRO – Acho que sob qualquer ótica o processo evolutivo do homem sempre teve algo de perturbador. Imagine o espanto que causaram a descoberta do fogo por atrito, e os inventos da roda, do anzol, da  escrita, da vela de navegação, da pólvora. Mas entre o fogo e a pólvora decorreram milênios. Enquanto isso, o cérebro humano pôde adaptar-se a novas demandas. A grande perturbação da era que vivemos é gerada pela velocidade das mudanças tecnológicas que impactam o comportamento psicossocial. Pesquisadores sociais dizem que  já estamos falando (e namorando) pelos dedos, e que relacionamentos amorosos terminam pela web ou pelo celular. Clica-se “Enviar” e pronto: o amor que era doce se acabou. Vivemos sob a tirania da pressa, do automatismo, do controle remoto, do mundo virtual. Isso, claro, enseja superficialidade, imprecisão, frustração. Qualquer pessoa constata que coisas banais como somar parcelas ou decorar números telefônicos já estamos transferindo para os chips dos celulares, dos smart-phones e calculadoras. Ainda não sabemos as implicações dessas mudanças de comportamento em nossas configurações e reações neuronais no futuro.

Em “Libido aos Pedaços”, Otávio, o personagem narrador, que é biólogo e observador, fala disso em várias passagens. Por exemplo, na pg. 28: “Ninguém quer ou já não sabe esperar. Refletir? Nem pensar! Todo mundo quer as coisas acontecendo logo, já e já, agora mesmo, se possível no controle remoto…” E adiante critica psicanalistas e sexólogos legitimando o sexo casual: “Vapt-vupt, pronto, ficamos, acabou, numa boa, limpa aqui, legal, quer carona? Tudo bem, tchau, me liga….” E  na pg. 43 um contraponto, “… urdiduras de natureza sentimental precisam de condições e agentes exclusivos: tempo certo no espaço apropriado e vento favorável às carências substituíveis.” Sob a ótica dos sentimentos, segundo os traços literários em Libido aos Pedaços, apesar de todos esses desvarios da pós-modernidade, acho que ainda haverá (algum) tempo e espaço para o meio-termo entre o cinismo de Otávio  na pg. 15, “Enfim, transar por transar ainda é humano” e a eloquência da sua psicanalista, Dra. Larissa, ao afirmar (pg. 27) que o amor (entre cunhados) não aceita aspas que o dissimulem, não cabe entre parênteses explicativos e dura o tempo mais-que-imperfeito.


DA – Chama atenção no livro uma verdadeira incursão pelo complexo universo da psicanálise. De que forma esse viés impactou seu impulso criativo?


CARLOS TRIGUEIRO – Talvez ao constatar que  na chamada pós-modernidade o homem tornou-se prisioneiro de suas próprias conquistas:  invenções tecnológicas, novos padrões socioeconômicos  e os ilusórios  artificialismos dos mega-aglomerados urbanos. Não é à-toa que, em “Libido aos Pedaços”, Otávio lê o aviso “Entrada proibida a pessoas com os pés no chão” na porta do consultório da psicanalista – Dra. Larissa Pontes. Em tese, o aviso significa que as pessoas, em sua maioria, são ou estão desequilibradas e já não têm  os pés no chão, pois o homem pós-moderno dos grandes aglomerados urbanos — sujeito ao trânsito infernal,  às enormes distâncias para cobrir  no cotidiano, à violência contra o ser humano e o patrimônio, à competição no trabalho, à concorrência empresarial, às imposições institucionais do Estado, dentre outras formas de pressão — acaba adoecendo pelos efeitos das suas próprias conquistas e invenções.  De outra parte, tsunamis de marketing o impelem ao consumismo no beber, comer, digerir, dirigir, usar, calçar, vestir, dormir, voar, navegar, fumar, filmar, fotografar, telefonar, etc. Sabemos que essas novas circunstâncias artificiais vão lhe afetar o sono, o humor, o aprendizado, o desempenho, os relacionamentos afetivos, sociais e de trabalho. Enfim, esse novo ser humano, modificado artificialmente para vencer, conquistar,  concorrer e, sobretudo, comprar e consumir muitas vezes o que não precisa, acaba nos labirintos dos hospitais ou nos consultórios de psicólogos, psiquiatras e psicanalistas. Numa obra como “Libido aos Pedaços” em que psicanalista e paciente dialogam em sessões, ora patéticas, ora bem-humoradas, o impulso criativo tem nuances bem variadas. Gosto muito da resposta sarcástica de Otávio ao psicanalista quando este lhe pergunta qual o ramo de negócio da sua família que o tornou tão rico, e Otávio responde na bucha: “Um ramo imbatível. Lojas de inutilidades para presente.” Há outros impactos sob esse viés como, por exemplo, quando Otávio diz que há suspeitas de que o próprio Freud, Pai da Psicanálise, tinha um caso secreto com a sua cunhada Minna Bernays.


DA – Na estruturação narrativa de Libido aos Pedaços, há um trunfo: a contraposição dos discursos de Otávio e Larissa arrematando constatações decisivas ao entendimento do leitor. Podemos dizer que há ali uma necessária desconstrução do discurso masculino?


CARLOS TRIGUEIRO – No contexto da história, Larissa e Otávio são muito preparados. Otávio, biólogo e autodidata, tem um discurso, digamos, naturalista, apesar do “machismo” que deixa escapar aqui e ali no seu texto confessional, como na pg. 17, quando diz  “a tendência feminina à traição vem codificada ao acaso no genoma de alguns espécimes”. Já Larissa, médica, com doutorado, psicanalista e autora do “best-seller” internacional “Amor em família”, expõe sua visão dos relacionamentos incestuosos com base em fundamentos históricos, ambientais e socioculturais. Não houve intenção do autor em desconstruir o discurso masculino, mas deixar a critério do leitor, segundo as informações das duas fontes, quem diz a verdade. Larissa é contundente quando cita o antropólogo Georges Bataille: “A confissão é a tentação do culpado”. Mas Otávio, numa sessão com o seu terapeuta, Dr. Guilherme Pessoa, também é contundente ao dizer que aprecia na peça teatral “Fedra”, de Racine, a  frase “Je respire à la fois l’inceste et l’imposture”.


DA – Como se deu o processo de construção do “eu” feminino?


CARLOS TRIGUEIRO – Não foi nada fácil. Experientes dramaturgos, cineastas e escritores do sexo masculino podem escorregar na construção do “eu” feminino. De fato, envolveu pesquisas, deu trabalho e levou muito tempo elaborar textos e diálogos segundo a natureza do pensamento feminino que, em geral, é muito mais versátil, volúvel e sagaz do que o pensamento masculino – esse mais focado e lento. Teorias antropológicas supõem que essa diferença remonte aos tempos pré-históricos, quando o homem saía a caçar para alimentar o grupo familiar e precisava de tempo, concentração e precisão para abater os enormes animais. Enquanto isso, as mulheres se sentavam à volta das fogueiras, preparavam alimentos, vestuário, cuidavam dos filhos e conversavam simultaneamente diversos assuntos. Em “Libido aos Pedaços”, o “eu” feminino explícito toma apenas 1/4 da narrativa, mas, em verdade, permeia, de forma subliminar, os diálogos entre Otávio e Larissa, e entre outros personagens femininos, bem como suas opiniões, ações, reações e atitudes, quase todo o livro. Sem parecer machista, talvez por isso mesmo, o “eu” feminino de “Libido aos Pedaços” teve várias versões, vários arranjos e ordenamentos durante oito anos até ficar bem delineado. A frase da contracapa do livro diz tudo: “O homem ao despir a mulher pela primeira vez, tem vaga chance de saber quem ela é. Nenhuma depois que a conhece.”


DA – Otávio é um personagem emblemático porque carrega em sua sina algo que parece um verdadeiro jogo de traição dos sentidos. O que dizer dessa sensação frequente de sucumbirmos aos desmandos irracionais dos desejos?

CARLOS TRIGUEIRO – Acho que o próprio Otávio, na pg. 39, responde isso muito bem, como biólogo/escritor: “… somos humanos, instintivos, imperfeitos, viscerais e diferenciados entre nossos semelhantes pela genética e pela variedade de combinações neuronais que cada um carrega no crânio – um cassino cerebral.” Ou ainda, de modo cínico, na pg. 41: “Então infidelidade não é mero pluralismo sentimental?”

Foto: Roberta Giglio



DA – A utilização dos diálogos é aspecto marcante em Libido aos Pedaços, algo que confere ritmo necessário à narrativa e consolida recursos cênicos. Pensaste objetivamente numa aproximação com a vertente teatral?
CARLOS TRIGUEIRO – Somente depois do livro pronto, esse viés dramatúrgico se tornou evidente. Durante a construção do Romance, não houve uma proposta deliberada de aproximação à forma de expressão teatral. Porém, é inegável que a natureza da obra, o tema, o enredo, a trama, diálogos em profusão, e a forma da narrativa contribuíram para dar essa impressão. A frase  “Quem nunca amou a cunhada não sabe o que é o amor”, de Nelson Rodrigues, que é a epígrafe anunciadora do Romance já dá o tom teatral da obra. Por outro lado, “Libido aos Pedaços” é um romance confessional, ou seja, uma confissão. Indo ao dicionário, veremos que “Confissão” é o “Ato” de confessar-se. E  o que é o teatro senão “Atos” e “Cenas”? E qual é a medula do teatro? Diálogos, claro. Pois bem, há capítulos inteiros (O XIV e XVI, por exemplo) sem narração ou descrição, só diálogos. Também aparecem no processo narrativo dissimuladas rubricas (como no Teatro) antecipando cenas, e, obviamente, mais diálogos. Sobressai ainda no texto do romance a sequência direta dos diálogos, sempre em itálico, dispensando os verbos explicativos (verbos dicendi) para indicar quem está falando. Sem presunção, creio que esse modo (ou técnica) de narrar  só foi possível graças ao apurado delineamento na construção dos personagens. Por fim, como há mais de uma confissão (“Ato”) na obra, talvez a expressão teatral aqui e ali sobrepuje a força narrativa da Literatura.  

DA – Em matéria de criação literária, o que você considera ser o grande desafio de nosso tempo?

CARLOS TRIGUEIRO – Essa é uma pergunta devastadora.  Vivemos uma época de rápidas e constantes transformações ditadas pelas tecnologias e pela cupidez dos chamados mercados que, aliados, aceleram o desmoronamento de costumes, valores culturais, morais e éticos construídos com lições de sofrimento através dos milênios. Goethe dizia que as fronteiras do homem são as coisas. As tecnologias e os mercados estão tentando eliminar esses confins e coisificar o homem. Vivemos sob o signo do “comprar é preciso”! Fala-se hoje que dentro em pouco viveremos em média 150 anos! Não importa se com chips, placas e aplicativos no lugar de ossos, cartilagens e neurônios. Esse pesadelo antecipa reflexões de Sábato, pois, nós, humanos,  resultamos de estranha dualidade: “fome desmedida de eternidade em um corpo miserável e mortal.”. Em termos de criação literária, acho que o grande desafio do nosso tempo é dar expressão artística a uma realidade atormentada por fantasmas eletrônicos, vírus virtuais, medos transmitidos à distância, sem a proteção dos sonhos e misticismos que “asseguravam nossa harmonia com o Cosmos” (como também dizia Sábato). Enfim, nossa infelicidade metafísica, nossa consciência das vicissitudes, fraquezas e finitude humanas  – argamassa da expressão artística e literária – estão sendo substituídas pela  inconsciência dos cartões de crédito, códigos de barras, senhas bancárias e embalagens para presente.

DA – Diante do que abordamos anteriormente, podemos crer na Literatura um instrumento de transformação do homem?

CARLOS TRIGUEIRO – Literatura não transforma nada. É somente uma terra encantada, precedida do aviso “É proibida a entrada a quem não andar espantado de existir”. Citação que mencionei na 27ª Leva, extraída do livro “As aventuras de João Sem Medo”, do notável escritor e poeta português José Gomes Ferreira (1900/1985). Literatura não transforma nada. É só mais uma indignação como nesses versos do mesmo autor: “Porque é que este sonho absurdo a que chamam realidade não me obedece como os outros que trago na cabeça?” Literatura não transforma nada. É somente um mergulho nos abismos da alma, como nos versos de Camões: “Ouçam a longa história de meus males, e curem sua dor com minha dor, que grandes mágoas podem curar mágoas”. Literatura não transforma nada, e bem o disse Roland Barthes: “Literatura é a pergunta menos a resposta.” Aliás, o personagem Otávio em “Libido aos pedaços” diz que os escritores, ao constatarem que eram de mentira os seus elos com a imortalidade, entram em desespero, e procuram na alquimia das palavras uma sopa orgânica que os regenere e, ao mesmo tempo, uma fórmula mágica que os imortalize. Literatura não transforma nada.

DA – Acredita que o Brasil é um país de leitores subestimados?

CARLOS TRIGUEIRO – “Para os milhares de brasileiros que podem alcançar os livros, e para os milhões que ainda vão poder” é a frase otimista e ilusória que abre o meu “O Clube dos feios e outras histórias extraordinárias” (1994). Mas o Brasil continua o mesmo continente monumental a transpirar cheiros, multicores, sons, rítmos, recursos e belezas naturais, sensualidade, e a confirmar a expressão (atualizada) de Pero Vaz de Caminha no Ano de 1500: “A terra é boa, em se plantando tudo dá”. E do ponto de vista cultural, continuamos Colônia, não mais da Coroa Portuguesa, mas  de uma classe política arcaica, imbatível às direitas, no centro ou às esquerdas, montada num sistema feudal que confunde, a bel-prazer, o patrimônio público com o privado. Assim, como já abordei na minha alegoria “O Livro dos Desmandamentos” (2004), o Brasil não é um país de leitores subestimados, mas de cidadãos vacinados pelos astutos políticos contra “ideias e maus pensamentos”, ou seja, educação plena e Livros.

DA – Depois de percorrer tantos caminhos da criação, através de suas obras e outras andanças, quem é, hoje, Carlos Trigueiro?

CARLOS TRIGUEIRO – Depois de perambular mundo afora e alma adentro, de sobreviver a pesadelos e impulsos secretos, de verter no papel as visões infernais de quem escreve com dilaceramento, gostaria de exaurir as ansiedades coletivas do meu tempo, mas, hoje, sou apenas menestrel das minhas  inquietações, imperfeições e fraquezas.

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