A crer nos relatos bíblicos, séculos a perder de vista nos separam do ato de rebeldia inaugural perpetrado pelo casal edênico, coadjuvado por um ofídio. Antes disso, o Livro dá conta de outra rebelião, dessa vez nas esferas celestiais, em que um anjo teria protagonizado um ato contestatório ao Grande Demiurgo, provocando uma cisão irremediável nas hostes do etéreo. Um desses antecedentes (ou terão sido ambos?) serviu de inspiração ao escritor amazonense Carlos Trigueiro (hoje residente no Rio) no processo de criação de seu Mahlaliel, o anjo também rebelde que encarna os contos de Confissões de um anjo da guarda (Bertrand Brasil, 2008).
Considerado com justiça um dos ótimos contistas da atualidade, autor de mais três obras de ficção: O clube dos feios e outras histórias extraordinárias (1994), O livro dos ciúmes (1999) e O livro dos desmandamentos (2004), além de Memórias da liberdade (1985), Carlos Trigueiro chama a atenção da crítica nacional há pelo menos uma década, haja vista que em O Clube dos feios… já se revela um autor que domina perfeitamente o seu ofício, como, de resto, demonstram cabalmente seus títulos seguintes.
Não obstante, um novo livro de um ficcionista pode trazer surpresas, até mesmo para leitores céticos e exigentes. Ainda mais quando retoma um velho tema – a rebelião dos anjos – e o traz para os nossos dias, conferindo a esse personagem uma mobilidade que lhe permite interferir nos negócios humanos, mas preservando seu anonimato.
Na primeira narrativa de Confissões de um anjo da guarda, Mahlaliel diz a que veio: trazer informações que corroboram o ceticismo terreno com as coisas do além. E não há contradição nisso, a rigor, porque Mahlaliel, que é tratado por seus pares como rebelde, devasso e inconfidente, prefere se autodenominar de “dissidente”. É que, ao contrário de um rebelde sem causa, ele tem abundantes razões para dissentir. Mas bastaria sua primeira alegação: apesar de ter solicitado dezenas e dezenas de vezes ao arcanjo de plantão uma audiência com Ele – o Onisciente, ou Architecto, o encontro lhe foi negado durante séculos. E assim, Mahlaliel não pôde questioná-Lo naquilo que o incomodava: “Por que Ele permite tanta desigualdade entre os homens, enquanto as demais espécies nascem, vivem e morrem sem oscilações de eqüidade, numa existência digna, do início ao fim?”.
A partir daí, Mahlaliel se muda com armas e bagagens para a Terra, onde, agora livre-pensador e livre-atirador, pode experimentar à vontade seu próprio método de justiça (às vezes, sumária!).
Mas o que reserva de mais extraordinário esse pequeno Confissões de um Anjo da Guarda é que ele faculta a cada leitor uma gama tão variada de temas e de histórias bem realizadas que cada um pode escolher, a seu gosto, seus contos favoritos sem, por outro lado, descartar quaisquer outros. De nossa parte, destacaríamos três, afora o conto que dá nome ao livro. O segundo seria “Uma questão de cor”, o terceiro, “O jornalista”, e o quarto, “Clínica para normais”.
O conto “Uma questão de cor” é de longe o relato mais realista do livro, não tergiversando diante de um tema candente e atual como o racismo de cor, em que o racista é literalmente punido “na própria pele”. Em “O jornalista” – conto que tivemos o privilégio de publicar, com pequenas diferenças em relação à versão atual, anos atrás, nas páginas de “O Galo” – apresenta ao leitor um diabo pragmático e reciclado, investindo contra uma dupla não menos “diabólica” de oponentes: o Mercado e o Sistema. E de tanto lidar com coisas da economia, o inferno finda sofrendo seus influxos…
No último conto de nossa eleição, temos um personagem em conflito com um mundo que debelou todas as doenças, e essa situação se torna sua enfermidade. Daí que ele busca uma doença que lhe devolva a sensação de humanidade tal como a conhecemos. Nos três casos, temos enredos extremamente humanos, apesar das origens extra-terrestres do protagonista alado. É nesse contexto que cada conflito humano se resolve, não obstante a ajuda às vezes nem tão angelical assim… Tem casos, porém, em que o elemento humano é vítima de sua excessiva curiosidade. É como poderíamos classificar o tema do último, mas não derradeiro conto do livro, já que o autor informa da existência de histórias “censuradas tanto na terra quanto nos céus. Por enquanto”.
Por Nelson Patriota
Fonte: http://www.tribunadonorte.com.br/noticia.php?id=83054