Fonte: http://www.vidaslusofonas.pt/carlos_trigueiro.html
CARLOS TRIGUEIRO
Escritor brasileiro: 1943 – …
REVOLUCIONE OS COSTUMES! À NOITE, PASSE A DORMIR COM |
QUANDO TUDO ACONTECEU… 1943: Nasce em Manaus, Amazonas; 1951: muda-se para o Cearáe reside em Fortaleza até 1956. 1964: ingressa no Banco do Brasil.1968: gradua-se em Administração Pública na Fundação Getúlio Vargas. 1973/4: faz pós-graduação em Disciplinas Bancárias na |
A HISTÓRIA A SEGUIR AINDA ESTÁ ACONTECENDO… |
No Nordeste do Brasil Carlos Trigueiro observa a miséria dos retirantes e a opulência dos coronéis. Entretanto, o que está a acontecer no resto do mundo? Consulta a Tábua Cronológica. |
Nasce em Manaus, Amazonas, no dia 28 de fevereiro de 1943, filho de Asteclíades Henriques Trigueiro, músico, mestre de Banda da Polícia Militar amazonense e de Solange Sampaio de Farias Trigueiro. Desde cedo viaja pelo médio e baixo Rio Amazonas, vendo contrastes: de um lado, a exuberância das águas e floresta, de outro a vida carente dos ribeirinhos, o que o influenciou como nostálgico memorialista. Em 1951, muda-se para o Ceará e reside em Fortaleza até 1956. De meninice livre, ora se aventura pelas dunas e falésias, ora adentra o agreste, e, mais longe, pisa o sertão. Testemunha outros contrastes: miséria dos retirantes e a opulência dos coronéis. Aos dez anos, ganha, como prêmio escolar, o livro As aventuras de Tom Sawyer, de Mark Twain, obra que o iniciará no gosto pela Literatura. Em 9/12/1956 deixa o Ceará e vai para o Rio de Janeiro. Ainda menor, trabalha num sanatório para custear seus estudos. Em 1964, ingressa no Banco do Brasil. Em 1968, gradua-se em Administração Pública na Fundação Getúlio Vargas. No biênio 1973/74 cursa pós-graduação em “Disciplinas Bancárias” na Universidade de Roma (Itália) e, em 1977, começa a colaborar esporadicamente em jornais sobre temas sócioeconômicos. Entre 1980 e 1996, vive em Madrid (Espanha), Macau (China), Roma (Itália), e Chicago(EUA). Em 1996, aposenta-se no Banco do Brasil. Começa a escrever exclusivamente ficção. Recebe o Prêmio Malba Tahan (1999), categoria contos, da Academia Carioca de Letras/União Brasileira de Escritores para O Livro dos Ciúmes (Editora Record) e o Prêmio Adonias Filho (2006), categoria romance, para O Livro dos Desmandamentos (Editora Bertrand Brasil) (www.carlostrigueiro.com). | |
PUBLICAÇÕES | ||
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MEMÓRIAS DA LIBERDADE, 1985 |
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O primeiro livro de Carlos Trigueiro é Memórias da Liberdade (1985, reeditado em 2008). É uma ficção autobiográfica, recordando a terra natal de Trigueiro, a Amazônia. O autor escreve este romance ao redor de seus 40 anos, fase de auto-análise, de reavaliação da vida. Da Amazônia recorda as folhas, referencial e metonimicamente. Umas caem, outras se transformam, ainda outras ficam a desfolhar as estações do ano e o ciclo da vida. Depois, a natureza ampla transforma-se no quintal da casa, com espaços limítrofes, mas ainda com lagartas e mamoeiros. A infância deixa de ter janelas, ou melhor, estas agora são eletrônicas. A árvore matriz de outrora descansa na mãe-terra como recordação. Primeira obra, prima pelo cuidado com a linguagem, antiga, mas erudita, em que a adjetivação predomina. A obra transmite-nos uma mensagem filosófica: o homem só é livre na infância, apesar desta ser o feudo dos pais. Ao crescer, a sociedade põe-lhe os grilhões, ocasionando a consequente perda de mobilidade. Resta o sonho.
Na prisão infantil, o sonho extrapola. A liberdade reside mais na mente do que na exterioridade, porque “o homem [já] nasce preso a outro ser pelo cordão umbilical. Já nasce preso”. Sempre haverá alguma forma institucional que cerceará os sonhos. Sempre haverá uma gaiola encaixando o ser, e o autor cita Kafka: “Uma gaiola saiu em busca de um pássaro.” Portanto, é a instituição que nos busca e não nós a ela. Da infância resta a memória e a recordação, aquela retém as sensações e percepções, esta permite representar o inteligível e transformá-lo em visões subjetivas, que ganham forma na escrita. Com sua sensibilidade, Trigueiro não relata fatos apenas pessoais, estes são arquétipos do comportamento humano em geral. No final, mostra que o ser é prisioneiro de si mesmo, e cita Lope de Vega: “Defiéndame Dios de mi.” Esta obra foi lançada, em 1985, em Macau. Trigueiro, trabalhando como funcionário internacional do Banco do Brasil, viajou mundos afora e viveu em continentes diversos. Por meio dos olhos de outras culturas, passou a ver a sua mais profundamente. As diferentes formas de pensar e sentir embutiram no autor um espírito universal, perceptível quando transcreve ficcionalmente sua experiência. Há a universalidade do ser humano e a do escritor que se fundem na preocupação com a escrita, “porque ultrapassadas as fronteiras da liberdade natural, o homem é prisioneiro de sua criação e do seu artificialismo e, portanto, de suas conquistas”. Sendo esta a primeira obra do autor, Trigueiro assim se expressa: Suponho que circunstâncias extraordinárias me induziram a despejar torrente de lembranças tão impetuosas quanta alheias à forma de expressão. Deslumbrado com a presença da História em cada palmo da Península Ibérica, estimulado pela forte aculturação, e tomando consciência de que ali os brios do passado inspiravam o presente, senti impulso de também reaver algo de mim mesmo: minhas raízes amazonenses, minha alma cearense, meu coração carioca, meu sonho brasileiro. |
O CLUBE DOS FEIOS, 1994 |
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O Clube dos Feios & outras histórias extraordinárias (1994) é uma coletânea de contos, muitos dos quais lembram o haiku chinês. Nesta obra, a forma de escrita de Trigueiro torna-se concisa, a diversidade do tempo e do espaço exige uma precisão maior. Em comum, as duas obras têm a universalidade da família humana em seu dia-a-dia. Marcus Penchel diz: “A apurada observação, senso de humor e antiquíssima visão do funcionamento cósmico que é absoluta novidade na literatura brasileira são trunfos destacados deste livro.”
Em O Clube dos Feios, Trigueiro reflete e colhe o essencial do mundo que percorreu, do ocidente ao oriente, desde a perspicácia do espírito italiano até a compreensão chinesa. O mundo físico e material mostra uma infinitude de interações, revelando a universalidade do homem em seus sentimentos, que, quando refinados, nos transportam à espiritualidade. Cada história é como uma parábola, com uma moral, muitas vezes regional. O caminho inicial de Trigueiro nessa obra é uma opção filosófica, já presente na capa do livro, que apresenta a lâmpada da filosofia (influência de Magritte), e em frases como: “O instinto é estável, a experiência cumulativa e as ilusões…erosivas”. Ao percorrer os contos, binômios são uma constante; corpo/alma, exterior/interior, imagem falsa/real, constructo/percepção. No entanto, verificamos que o exterior se modifica, enquanto que o interior permanece intacto. A essência humana é permanente. Diz-se em português tradicional que “o bom filho à casa torna”. Sempre há um retorno às origens, pois um indivíduo sem raízes é pessoa morta. Para tanto, em sua busca, o ser humano revela um amor incondicional, amor este que não vem através do corpo. O amor faz parte da beleza intrínseca. A feiúra, por sua vez, é um intertexto: há a feiúra física, do corpo que assim nasce ou se torna feio com a idade; a feiúra interna, como a inveja; e a feiúra histórica, como a guerra, com suas atrocidades e ideologias. Vejamos a beleza e a feiúra nos nove contos. “O Clube dos Feios” é o conto-título. A realidade se faz ficção e vice-versa. Soube-se da existência de um clube de pessoas feias na Itália, por volta do século XVIII; dele restava o mito. Vale mencionar, no entanto, que a história foi escrita sem o conhecimento da existência de tal clube por parte do autor. O mesmo foi recriado em 1995 em Piobicco (Ravena). Trata-se de uma comunidade de pessoas feias, deformadas de fato ou que se vêem feias. Entre o conto e o clube real, a recriação e representação cabem a Trigueiro. No conto, os seres são socialmente isolados: “A crueldade do mundo excluiu os feios de tudo quanto é código protetor”. Só passam a existir neste clube, onde não há discriminação. Ao entrar nele, há um “grande espelho,” como se fosse o altar da sede. Este espelho é o espelho d’alma, reflete nossa imagem, mas, sobretudo nossa auto-imagem, que é o reflexo do que os demais pensam de nós e que tentamos adaptar ao que os outros esperam de nós. Esta imagem é a que produz nossas dores, punições até a autodestruição. A Srta. Milfford encaixa-se nesse perfil. A feiúra não dá espaço para o amor e o sexo. Ela conhece, através de um dos agremiados, o prazer da carne. Prazer? “Fiz por uma questão de gratidão. Fiz. Não me entreguei. Fiz porque também queria me sentir como todo mundo”. Sofreu um acidente. Teve que fazer uma operação plástica. Tornou-se bela. Viveu os prazeres do mundo e suas desilusões. Veio a maturidade depois de estar “suficientemente curtid[a] de mundanidade.”…“O racionalismo tinha afastado qualquer vínculo com [s]eu mundo interior. Com [sua] feiúra, precisamente”. E sentiu falta de si mesma, “como era no passado. Por incrível que me pareceu, senti falta da mulher feia que era, ou mais emotivamente, senti saudades de mim mesma”. E refletiu sobre o que era ser bela. Voltou ao Clube e foi afetuosamente recebida: “Você não mudou absolutamente nada, apesar dos anos ainda parece aquela mesma assustada senhorita que vi no trem pela primeira vez”. O grande espelho lá estava para mais uma vez corrigir as imperfeições. O espelho é um significante, uma marca da alienação radical do sujeito da realidade, mas é um significante unitário, no sentido que engloba ao mesmo tempo o ser e o não ser. O espelho é o sujeito que nos ajuda a conceber a realidade humana como uma construção, e como o reflexo ideal. Mas a relação que o sujeito empreende com o espelho é ambígua, como aponta Kaja Silverman ao fazer a análise do sujeito psicanaliticamente. Ao mesmo tempo em que “ama a identidade coerente que o espelho fornece, esta imagem permanece externa a ele, portanto, o sujeito a odeia” (Silverman). Quando era bonita, a Srta. Millford não encontrou seu “eu”, apenas a beleza, não a si mesma. Só quando a Srta. Milfford consegue enxergar-se tal como é, em sua integridade, a imagem deixa de ser perturbadora. Em O Clube dos Feios, vemos que o número nove está presente de forma diversa, mas constante: há nove histórias, no segundo conto há nove dias, no terceiro há nove tons. Existe a brincadeira infantil: nove, noves fora, nada. Mas o número 9 para Trigueiro não é arbitrário, mas há por detrás dele uma filosofia milenar. Quanto à ordem das histórias, esta é um jogo, uma história acrescenta algo a outra intertextualmente, cada traço é mais um aspecto do ser humano. No final, nada resta do ser humano a não ser sua essência, a humanidade. A vida é, pois, uma ilusão feita de circunstâncias, que não estão sob o controle do homem, por isso o autor joga com a inversão de expectativas e de valores. Este fenômeno poderá ser interpretado através do realismo mágico, mas o imprevisível é um traço inefável da espiritualidade a partir da qual tudo é possível. Em O Clube dos Feios, Trigueiro viaja pela Europa (Inglaterra, Itália), pelo oriente (China), pelo continente americano (dos Estados Unidos ao Brasil). Cada lugar tem seu regionalismo, mas todas as partes são compostas pelo ser humano e seus traços são universais. Cada história tem uma personagem que se destaca, não pela profissão, mas pela função que desempenha ou não, por uma característica de “trabalho” pela qual optou: agremiado, intelectual, pescador, especializado, vice-presidente de marketing, missivista, terminal, magistrado, letrado. Da atividade resta o traço, que compõe a universalidade humana. Todas personagens ainda se destacam por outros traços que também fazem parte do ser humano e que se apresentam como valores: beleza, intelectualidade, sonho, ilusão, afetividade, materialismo, auto-realização, sanidade mental, numa junção de corpo/ mente/espírito. Todos estes traços se amalgamam num valor só, para Trigueiro: a humanidade do ser humano, que é mostrada ao leitor em sua diversidade, mas a universalidade é o traço maior, o arquissemema, desta humanidade. A espiritualidade é o único valor que está acima do destino do homem e que é a sua salvação. O título da obra cita uma história “e outras histórias extraordinárias”. Trigueiro usa a palavra “história” para não prender-se a nenhum gênero, mas individualiza as histórias: há contos, conto-crônica, um diário, uma fábula, um fluxo de consciência, um relatório, uma missiva (carta) e uma lenda. Todas as histórias são narrativas sobre o ser humano, todas são construções do autor; o que resta é a escrita como elemento unificador. A inversão de expectativas constitui parte integrante do estilo de Trigueiro. Diz o autor: “faz parte da minha concepção de que a ficção é como a vida mesmo, uma sucessão de expectativas que nunca ou raramente se sucedem com as horas do relógio. A imprevisibilidade do pensamento humano afasta-o do instinto – que é estável. Quando através da descoberta do instrumento linguagem os nossos antepassados começaram a criar, arranjar, combinar e permutar os signos e a interrelacioná-los com significados de seu universo material (as coisas) não sabiam que estavam criando outro universo (o interior), muito mais complicado, dramático, inesperado e inexplicável mesmo.”. (Rector). |
O LIVRO DOS CIÚMES, 1999 |
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Seguindo a frase-definição de que o ciúme é “imanente fraqueza humana, não há quadrante onde não viceje” e de que “ninguém é imune” a ele, o autor mostra vivência de muitos anos no exterior, em várias culturas, e percorre um delírio de épocas diversas para confirmar que esse “monstro de olhos verdes”, na concepção do eternamente atual Shakespeare, sempre existiu e sempre existirá. Não é sem razão que Carlos Trigueiro revela, no primeiro conto, a existência do borgiano livro “Lendas ciganas, rara versão gitana” de As mil e uma noites, e da “Musa dos ciúmes”, que inspira a criação dos textos. A partir daí todas as onze narrativas, apesar de independentes, se ligam à primeira, em que a personagem, a musa, “com forte sotaque andaluz”, sopra cada um dos contos, cabendo ao narrador adaptá-los “aos tempos e quadrantes da vez”. (Naumim Aizen)
A obra trata de um velho escritor espanhol, já afastado da literatura e que é despertado durante a noite por antigos personagens que havia criado em seus livros. As personagens se reúnem na biblioteca do escritor e decidem que ele precisa voltar a escrever. Para tanto , lhe fornecem: título do livro, número de páginas, narrativas, descrição das personagens, tudo relacionado com o “ciúmes”. Não muito convencido, solicita uma musa inspirada. Ela entra em cena, é uma cigana linda, extraída do livro As mil e uma noites. A partir daí, o escritor cria doze histórias com circunstâncias, épocas e personagens de faixas etárias diferentes. |
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O LIVRO DOS DESMANDAMENTOS, 2004 |
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Na advertência do livro, Trigueiro avisa o leitor sobre a obra que tem pela frente. Trata-se de um romance político em que o autor mostra “a verdade sem ser bem essa”, ou seja, o autor desfila a hipocrisia de uma sociedade que aparentemente apresenta ordem e paz, porém em pouco mais de um século, conseguiu adotar meia dúzia de constituições, duas formas de governo, o presidencialismo e o parlamentarismo, nove padrões monetários, além de duas ditaduras. Esta confusão e multiplicidade ocorrem num país fantástico, portanto, o realismo mágico permite digressões sem que a verossimilitude se perca. Por exemplo, Luiz Horácio analisa o diabólico Coronel Justo Sacrossanto, um representante das oligarquias nordestinas, proprietário de terras e influente na política local. A personagem tem um defeito congênito, dois braços direitos. Isto abre a porta para a fantasia e para explicar a política brasileira de ontem e de sempre, onde no caso do nordeste, impera o livre-arbítrio das autoridades, onde o dinheiro corre vivo e os prazeres sexuais têm um preço igualmente quantificável.
Segundo Ivo Barroso, esta obra é uma “mescla de ensaio, teatro mambembe, romance de cordel. Vazado num estilo que não faz concessões ao vulgar, esta frenética fabulação se desdobra em crítica pungente à nossa história política atual, a seus antecedentes e desdobramentos futuros. Trigueiro lança mão do flashforward em que antecipa ações que vão acontecer para os personagens, mas que para o leitor, são eventos já vividos observados a posteriori. No entanto, o autor os analisa como objetos de crítica social e política, expondo-os à galhofa e ao sarcasmo, já que não pode impedir que aconteçam nem sequer modificá-los, passando a vida a limpo. Enfim, um livro dentro do livro [uma narrativa encrustrada, embedded narrative] em que, graças a uma engenhosa arquitetura, o autor sobrepõe à narrativa picaresca todo um aparato sócioanalítico que esmiúça as nossas esperanças do passado que se foram transformando em desilusões do presente”. |
CONFISSÕES DE UM ANJO DA GUARDA, 2008 | |
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Em muitas das onze histórias destas Confissões de um Anjo da Guarda, o anjo Mahlaliel, o narrador, é um dissidente que introduz a ambiguidade ou até a corrupção, nas hostes celestiais, e sua interferência, sua intercessão a favor dos homens vão da pungência ao sarcasmo e alcançam mesmo o grotesco (Jair Ferreira dos Santos).
O conto inicial que dá o título ao livro permite ao anjo falar por si. E vemos um anjo humanizado, com seus defeitos, seu sarcasmo, e a descrença em muito do que viveu até aqui: “decidi raciocinar, em vez de acreditar cegamente em tudo o que me haviam ensinado que existe”. Tornou-se um anjo dissidente, alguns passaram a considerá-lo rebelde, devasso e inconfidente. Foi banido do convívio de seus pares, dos arcanjos, querubins e serafins. Como este anjo é o narrador, desculpa-se da falta de familiaridade com a escrita, justificando suas discrepâncias. É um anjo antigo, tem 2578 anos, mas anjo não envelhece. Tem beleza e robustez física permanentes: “Descrevo-me porque a condição humana não pode prescindir do senso estético, a rigor uma dissimulada manifestação da sensualidade”. Confessa seus desvios e mostra que o ser humano até pode ser desculpado no mundo terreno – pois os anjos varrem a imundície do Céu para debaixo das nuvens. Em entrevista a Hilton Valeriano, Trigueiro assim se manifesta sobre sua obra: “A ironia e o sarcasmo se bem utilizados podem sacudir os credos do leitor. Na nossa cultura religiosa, bíblica e dogmática, onde aparições, milagres e fatos inexplicáveis são amparados por sofismas como “Mistérios da Fé”, julguei o onividente Anjo da Guarda um narrador ideal para avaliar os percalços da condição humana. Assim, os contos narrados pelo Anjo Mahlaliel, contêm uma dialética licenciosa que pode levar um atento leitor à reflexão. Hoje, vivemos sob o domínio das tecnologias, dos automatismos e respostas prontas online, do marketing consumista massificado pela TV, de modo que quase nunca nos observamos interiormente ou olhamos entorno para meditar e refletir sobre esses abismos da alienação contemporânea –– esses vazios de reflexões sobre os desconcertos do mundo”. Entre risos e um humor calcinante, Trigueiro guia o leitor por um emaranhado de verdades, poucas vezes ditas, intercalando ideias e características de outras personagens famosas, reciclando o passado, e mostrando que a escrita é eterna. |
LÍBIDO AOS PEDAÇOS, 2011 |
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Neste romance, o autor desnuda o envolvimento do personagem Otávio Nunes Garcia com a própria psicanalista, Dra. Larissa Pontes, irmã de sua mulher. Aí, duas possibilidades. Primeira: o leitor desfruta, sem contestar, de uma narrativa instigante mas verosímil, que isso de se apaixonar pela cunhada é proverbial, como diria Nelson Rodrigues. Segunda possibilidade: o leitor se envolve numa bela urdidura novelesca e compartilha das diferentes visões dos personagens (e cunhados) sobre o seu espúrio caso amoroso. O autor nos leva às brumas do mundo psicológico, onde tudo depende de como se vêem as coisas e os fatos (W. J. Solha)
Lúcia Bettencourt mostra que os amores proibidos são geralmente irresistíveis numa boa história. O que dizer, então, de amores duplamente proibidos, envolvendo tabus? No sofisticado romance de Carlos Trigueiro, nestes tempos de amores líquidos, somos obrigados a reconhecer que a libido, aos pedaços ou não, continua sólida, servindo de espinha dorsal para a construção da narrativa. Bettencourt segue mencionando que a epígrafe rodrigueana já nos adverte: “Quem nunca amou a cunhada não sabe o que é o amor”. Ao ler o romance, já na segunda página descobrimos o envolvimento de seu personagem e narrador, Otávio, com a cunhada e psicanalista Larissa. Ora, concluímos, se Otávio ama Larissa, ele sabe o que é amor. No entanto, perguntamo-nos, seria possível amar nos tempos líquidos em que vivemos? Colocando em discussão a própria vida moderna, Otávio, múltiplo como nos descobrimos todos, dialoga com certezas científicas, sendo que seu principal diálogo é com a própria literatura. São muitas e diversificadas as referências a autores literários, localizadas, principalmente, na velada disputa intelectual entre Otávio e seu rival, o Dr. Guilherme Pessoa. Para Trigueiro, Em Libido aos pedaços, “o tema da sexualidade, e, até certo ponto, das drogas, é abordado, digamos, de forma dramática e psicológica, num contexto de romantismo, mas sem falso moralismo, sem apelos a pieguices e sem cair na banalização do “vapt-vupt” sexual. É uma tentativa talvez pretensiosa, de trazer a complexidade das atrações amorosas espúrias, ou seja, no âmbito familiar, para um debate entre especialistas, estudiosos do comportamento humano, ainda que no âmbito ficcional, pois os recursos da ficção literária reluzem matizes pouco ou, talvez, nuncs explorados”. |