(Escritor Carlos Trigueiro)
Nos confins paraibanos, rumos de Coitezeiras, Francisco, meu avô paterno, músico, encantou um bilhete no sopro do clarinete. A mensagem soprada varreu léguas, marcos, fronteiras e chegou a Parnamirim, terra potiguar, onde vivia Maroca, minha futura avó. Maroca, com os olhos da cor do céu, desencantou o bilhete musicado e não parou de cismar. A réplica levou a eternidade de três luas no lombo de jegue amuado e montado por um abestado. Depois de ler o bilhete de Maroca, Francisco botou o clarinete no ombro e o berro no cinturão. Juntou seus teréns numa trouxa e cavalgou as léguas da precisão. Até hoje ninguém sabe se Francisco pediu a mão de Maroca ou se Maroca o agarrou pela mão. Sabido e comprovado é que, chegando ao litoral, arranjaram bilhetes num veleiro e arribaram pro Norte da promissão.
No baú familiar de achados e perdidos, um bilhete dizia que meu avô materno, Manuel, cearense rijo como as rochas monolíticas da sua Quixadá, sobreviveu à penúria espalhada pela “seca de setenta e sete” (1877) e deu muito que falar. Pois Manuel deu o sangue e o suor na construção do açude do Cedro, até que, cansado do sertão, cismou com a arribação. Vendeu as sobras dos seus roçados e o que lhe restou da criação, salvo a mula que montou no rumo do litoral. Comprou um bilhete de navio, sabe Deus se a vapor, e arribou pro Norte da promissão. No auge do ciclo da borracha, Manuel se embrenhou nos seringais e fez dinheiro no alto Juruá. Quando inteirou vinte e um contos de réis, enfiou um bilhete numa bola de seringa que foi boiando até os pés de Izaura na outra margem do igarapé. Minha futura avó leu o bilhete e com apenas 13 anos, já dona das próprias ventas, se benzeu e rezou “Nossa Senhora me livre de todo o mal”. Em seguida, desfez a rede, fez a trouxa, e juntou o seu destino ao de Manuel: “Adeus, seringal!”. Os tempos que vieram foram de muitas arribações, trocando bilhetes de motor, de alvarengas, de batelões e de outras montarias fluviais, inclusive navios-gaiola. Engendraram sete filhos entre o azul do Tapajós e o lago do Manaquiri no baixo Solimões.
Meu pai, músico, de nome grego impronunciável, mais conhecido por Teté, mandou um bilhete encantado pra Ceci, minha mãe, no outro lado da rua poeirenta, em Manaus, quando a segunda grande guerra ensaiava pra começar. Desencantado o bilhete, marcaram encontro com hora e lugar musicados: em frente ao coreto da praça, assim que a banda parasse de tocar. Juntaram vidas, destinos, quatro filhos, redes, trapos, trecos, teréns, flauta, flautim, sax, clarinete, compraram bilhetes do Almirante Alexandrino, navio do Lóide a vapor, e arribaram pro Ceará.
Na praia de Iracema, minha mãe fez um bilhete pra professora dizendo que naquela semana eu não iria ao grupo escolar. E um bilhete explicou: “com catapora da braba, é melhor o menino sossegar”. Depois do resguardo, já sarado, danei a escrever versos de pés quebrados, e mandei bilhetes pra dezenove meninas das redondezas, cada uma mais linda que a outra, e sonhei o dobro das que contei nos bilhetes: pois já eram trinta e oito as que se embeiçaram pra me namorar. Em Fortaleza, vi o primeiro bilhete de trem, mas meu pai não me deixou na maria-fumaça embarcar. Só me permitiu um bilhete pra olhar o trem de perto, pois era uma peça de museu, pros lados da Praça José de Alencar.
Ainda no Ceará, meu pai comprou um bilhete de loteria e sonhou que estava rico. Mas o prêmio foi de poucos mil-réis, já que o número sorteado era só uma aproximação. E de uma coisa não me esqueço dos meus tempos de moleque: um primo de criação achou um bilhete de rifa no chão. No sorteio, durante a fogueira de São João, ganhou um patinete, um saco de mariolas, um pião e uma molecada correndo atrás dele: “Pega ladrão!”.
Naquelas alturas da vida, fiquei sabendo que bilhete servia pra muitas coisas. Minha mãe contou que o marido da vizinha recebeu o bilhete azul e a família estava passando necessidade. A mãe, sem nenhum rococó, fez um ensopado de peixes – biquaras e ariacós – com muito arroz e pirão. Em seguida, escreveu um bilhete e me chamou no beiral da porta: “menino leva essa panela pra vizinha, mas não se esqueça de entregar o bilhete que boto na tua mão.”
Então era isso: bilhete servia mesmo para muitas coisas da vida e até da morte. Aliás, a primeira pessoa morta, mortinha, que eu vi de perto, roxinha feito azeitona, foi Maristela. Diziam que tinha quinze, dezesseis anos. O namorado abandonou a bichinha que apaixonada e buchuda tomou meio litro de cajuína com formicida e estrebuchou na calçada. Deixou dois bilhetes enfiados no fecho das alpercatas. Na alpercata do pé direito, fez um bilhete pra família pedindo perdão. Na alpercata do pé esquerdo um bilhete pro namorado pregando maldição. Naquele dia aprendi que bilhetes também serviam pra todo tipo de provação: um cabra podia ficar viúvo e não ter casado não.
Fiz uma arraia colorida e arretada, soltei a linha da maçaroca e botei a danada no ar. Na ponta da rabiola, botei um bilhete de tal jeito que, embioca daqui, embioca dali, o bilhete caiu no quintal da Mariazinha, moça feita, que eu sonhava namorar. Ao ler o bilhete amoroso, Mariazinha fez uma figa, subiu na cerca do quintal, me acenou uma banana com o antebraço, me mandou praquele lugar passando as mãos no avental.
Quando cresci, ganhei e rodei o mundo, vi bilhetes em trens, barcos, barcaças, navios, aviões, circos, cinemas, museus, boates, teatros, bondes, ônibus, rodas-gigantes, montanhas-russas, carrosséis. Bilhete em tudo quanto era idioma:billiet, biglietto, billete, ticket e noutras línguas em que bilhete é baita palavrão. Moral da história: mundo rodado, tempo passado. Enquanto isso, os bilhetes a mão foram findando, findando, findando. Agora é tudo bilhete eletrônico, a tal mensagem digitada que apelidaram de torpedo, emeio, ou frase tuitada, e que acende e apaga numas telinhas brilhantes de nomes estranhos, “esmartefone, celular, tablete” que parecem coisas de satanás, pois levam os bilhetes a toda parte e a qualquer hora sem precisar sair do lugar seja pra frente seja pra trás.
Enfim, hoje as tecnologias impõem os fazeres das pessoas e do mundo. E mostram que o tempo dos bilhetes de verdade acabou. Pensava assim, até reencontrar um parceiro de conversa vai conversa vem, dos tempos de O saco literário: o cearense Nilto Maciel palestrando na Academia Brasileira de Letras em pleno Rio de Janeiro. Entre falas e abraços, com saudades de outros tempos, fiquei encucado com o que ele me falou em fluente convicção. Por incrível que pareça, o Maciel me disse que ainda acreditava e acredita em bilhetes, isso mesmo, e em bilhetes literários, talvez até feitos a mão, e me pediu esse arremedo de escrito, escritura, escrituração, pois, rasgos de literatura… não sei, não. Então, pra escrever um bilhete com trejeitos de outras eras me disse ainda:“Trigueiro, me sopra um bilhete fagueiro que eu solto o bicho no espaço Literatura sem Fronteiras.“
Diante da ideia do cabra pai d’égua, fiquei a cismar do mesmo jeito que os meus avós lá se vão cento e tantos anos. Concluí: no Ceará dos meus tempos, nas dunas que o vento soprava pelas bandas do Mucuripe, a linha que a vista alcançava separando o céu do mar não passava de pura visagem. Porém, anteontem despertei assustado. Tive um sonho danado. Mas me dei conta de que estava acordado e lembrei bem lembrado que a linha no horizonte onde as jangadas se perdiam existia mesmo, não era visagem, nem quimera, nem utopia, nem surto ou imaginação. Por isso tenho certeza de que esses bilhetes que fiz agora e aí acima arremedados só vieram à memória porque os escrevi imune a cercas, cercados, marcos, sertões, cacimbas, açudes, brejos, olhos d’água, riachos, igarapés, rios, mares, montanhas, nuvens, secas, desertos, florestas, neve, gelo, degelo, tufões, tempestades, tornados, fases da lua, estações, meridianos, fronteiras. Porque os escrevi com o pedaço cearense da minha alma, ou seja: em permanente arribação.
Fonte:Literaturasemfronteiras.blogspot.com.br