“Libido aos pedaços”, Prosa&Verso/blog – 09.01.2012

Resenha de ‘Libido aos pedaços’

Libido aos pedaços, de Carlos Trigueiro. Record, 224 páginas. R$ 37,90.

Por Lúcia Bettencourt *

Amores proibidos são geralmente irresistíveis numa boa história. O que dizer, então, de amores duplamente proibidos, envolvendo tabus? No sofisticado romance de Carlos Trigueiro, nestes tempos de amores líquidos, somos obrigados a reconhecer que a libido, aos pedaços ou não, continua sólida, servindo de espinha dorsal para a construção da narrativa.

A epígrafe rodrigueana nos adverte: “Quem nunca amou a cunhada não sabe o que é o amor”. Ao ler o romance, já na segunda página descobrimos o envolvimento de seu personagem e narrador, Otávio, com a cunhada e psicanalista Larissa. Ora, concluímos, se Otávio ama Larissa, ele sabe o que é amor. No entanto, perguntamo-nos, seria possível amar nos tempos líquidos em que vivemos? O romance indica que a solidez do que nos acostumamos a chamar de amor se desfez e nos deixou flutuando entre os pedaços de uma libido já sem aglutinação.

Colocando em discussão a própria vida moderna, Otávio, múltiplo como nos descobrimos todos, dialoga com certezas científicas, com postulados psicológicos e máximas da sabedoria rodrigueana. Seu principal diálogo, porém, é com a própria literatura. Otávio funciona como uma Capitu às avessas, um marido que não tem certeza se foi ou não infiel (“…o sujeito que mente à mulher o tempo todo corre o risco de tomar a farsa como verdade”). Sua aproximação a Machado não para por aí. O memorialista, descobrimos ao final, é um autor defunto. Esse “defunto moral e imoral”, munido de ceticismo científico, cria máximas que poderiam justificar Virgílias e Sofias (“Qualquer mulher recatada é capaz de prevaricar sem os fantasmas da culpa ou do remorso desde que, socialmente, não perca o atributo de mulher honesta”), enquanto perdoa deslizes ao localizar a causa dos mesmos na genética (“somos humanos, instintivos, imperfeitos, viscerais e diferenciados entre nossos semelhantes pela genética e pela variedade de combinações neuronais”).

São muitas e diversificadas as referências a autores literários, localizadas, principalmente, na velada disputa intelectual entre Otávio e seu rival, o Dr. Guilherme Pessoa. Proust, Balzac, Shakespeare, Nelson Rodrigues, Machado de Assis e outros são moedinhas brilhantes que reluzem na disputa de falas que revela a verdadeira e falaciosa competição – a dos machos e seus falos. Porém, não existe sexismo. As irmãs também competem ferozmente e recorrem a todos os recursos de sedução de que dispõem. Se Larissa, a psicanalista, seduz pela leitura de seu livro “Amor em família”, Débora, jornalista, avança com sua lucidez enquanto Giovanna tem como trunfo a juventude e inconseqüência de uma Lolita. Não se pode afastar, porém, o envolvimento de Mariana, a mãe moderna e liberal das três irmãs. Nem a presença de Berenice, a governanta/babá, que comanda o lar e desvenda segredos de alcova.

Absolutamente envolvente, os pedaços de narrativa vão se completando, encaixando num jogo de armar, e a última palavra cabe sempre ao próximo leitor, já que Otávio é “um extraordinário farsante até o fim”.

“Libido aos pedaços” é o décimo segundo livro do autor. Trigueiro, amazonense nascido em 1943, começou a publicar em 1985 (“Memórias da Liberdade”). Pela Record ele já publicou “O livro dos ciúmes” (1999), “O livro dos desmandamentos” (2004), e “Confissões de um anjo da guarda” (2008). Affonso Romano de Sant’Anna, nos idos de 2004, o saudou como um dos três “autores maduros” que chamavam sua atenção, ressaltando seu “texto limpo, enxuto, com densidade poética sem pieguismo”.

Falando de seu ofício, Carlos Trigueiro diz que “a índole observadora é a principal ferramenta de que se vale o escritor para ampliar o seu olhar sobre o mundo” e revela “o desejo de encontrar no mundo feito de palavras um poder mágico e catártico”. Neste seu romance, a palavra aparece em toda sua pujança criativa e justifica a opinião do narrador de que ela é “o mais antigo ancestral da roda”.

LÚCIA BETTENCOURT é autora do livro de contos “A secretária de Borges”, entre outros livros.

Fonte: http://oglobo.globo.com/blogs/prosa/posts/2012/01/09/resenha-de-libido-aos-pedacos-de-carlos-trigueiro-422798.asp#.Tw3IAg6Yepk.email

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *